Sincericídios neoliberais
por Paulo Kliass
Ao longo dos últimos dias, a sociedade brasileira tem sido brindada com algumas terríveis pérolas do mais escandaloso conteúdo conservador em termos de política econômica e de projeto nacional. É bem verdade que esse tipo de manifestação partindo da boca de representantes de nossa elite política não chega a ser uma novidade. O problema, ocorre, no entanto, quando os meios de comunicação e uma parcela das lideranças sociais começam a naturalizar esse tipo de comportamento.
Nosso País sempre encontrou dificuldades em superar os períodos mais difíceis de sua História. Uma das razões com certeza se relaciona à ausência de debates a respeito das sequelas provocadas por regimes perversos e injustos e suas transições políticas e institucionais, onde algumas das características do passado se mantiveram nos novos momentos. Assim foi com a questão colonial e escravista, bem como com a superação da ditadura militar que se implantou em 1964.
Ao não promover um processo político e social de crítica profunda de tais períodos, inclusive com inscrições na legislação e punição dos responsáveis, permite-se que fatos abomináveis ainda persistam nos dias de hoje, como os sucessivos escândalos de denúncias de existência de trabalho de escravo em pleno século XXI, quase 140 depois da Abolição da Escravidão. Ou então a absurda possibilidade de anistia a participantes de uma tentativa de golpe de Estado, que reivindicavam de forma aberta a volta de uma ditadura militar no País.
O fato concreto é que muitas vezes algumas pessoas com destaque na vida política nacional assumem verbalizar aquilo que as classes dominantes pensam e desejam, mas muitas vezes sentem vergonha de expressar de forma cristalina. Esse é o tal do sincericídio, pois o pensamento flui de forma natural e espontânea, muitas vezes expondo o agente político em toda a sua manifestação autêntica e de franqueza.
Armínio Fraga, o neoliberalismo do banqueiro.
Pois vamos apontar aqui algumas das manifestações mais recentes.
O banqueiro e ex Presidente do Banco Central Armínio Fraga participou de um evento chamado “Brazil Conference”, sediado em Harvard nos Estados Unidos. Ao longo do encontro, patrocinado por grandes empresas e empresas multinacionais, desfilaram diversas lideranças do mundo empresarial e do sistema financeiro. Os discursos, como era de se esperar, eram todos dirigidos a esse universo conservador e pretendiam consolidar uma abordagem de mesma natureza a respeito dos principais problemas do País.
Fraga foi chamado a falar dos aspectos da economia e focou na questão fiscal. Repetindo o mantra falacioso do catastrofismo das contas públicas, ele chamou a atenção para as dificuldades que considera urgentes no campo da previdência social. E aí não teve papas na língua para apresentar a sua solução:
(…) “Eu acho que precisa de uma reforma grande. Uma boa já seria, provavelmente a mais fácil, congelar o salário-mínimo em termos reais. Seis anos congelados já ajudaria” (…) [GN]
O absurdo da proposição não significa uma novidade vinda de sua boca. Em quase todas as oportunidades em que se manifesta, Armínio fala respeito dos problemas do salário-mínimo para as contas públicas e para o chamado custo Brasil. Mas desta vez, ele parece ter se superado em seu sincericídio.
Outra manifestação semelhante foi efetuada pela atual Ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet. Integrante do MDB, ela tem sua formação econômica bastante influenciada pelos documentos e debates do seu próprio partido. Assim, talvez tenham sido os resquícios das proposições constantes do manifesto “Ponte para o Futuro” que a tenha levado a se manifestar algumas semanas atrás. Trata-se de um texto de 2105, em que o MDB tentava se credenciar junto às elites nacionais como uma organização política confiável e capaz de receber delas todo o apoio necessário no processo de impeachment de Dilma Roussef, quando o vice Michel Temer assumiria o Palácio do Planalto.
A preocupação de Tebet: não matem o doente.
Ali estão presentes as linhas gerais de um programa de governo incluindo privatização das empresas estatais, diminuição da dimensão do Estado, redução de direitos constitucionais e uma defesa ardorosa da austeridade fiscal. Vêm daí as medidas na área econômica sob o comando de Henrique Meirelles no Ministério da Fazenda, levadas a cabo a partir de 2016, inclusive com a promulgação da Emenda Constitucional 95, aquela relativa ao Teto de Gastos.
Pois a Ministra assumiu em entrevista à imprensa sua real intenção com relação às necessidades de aprofundamento do arrocho fiscal:
(…) “Então, nós temos uma janela de oportunidade que não é agora, é em novembro e dezembro de 2026, seja o presidente Lula o candidato e reeleito, seja outro candidato eleito, de fazer o fiscal, cortar gastos, cortar o supérfluo, fazer uma política num arcabouço mais rigoroso, que não mate o paciente, obviamente” (…) [GN]
A exemplo de Armínio, ela verbaliza integralmente sua estratégia para que a austeridade fiscal seja ainda mais aguda, sem que as instituições políticas precisem ser submetidas a pressões e tensões que tais medidas impopulares costumam apresentar. Ela sugere um verdadeiro golpe contra a ordem democrática e republicana, quando um governo federal foi eleito e ainda não tomou posse, quando uma nova composição do Parlamento também foi eleita e ainda não assumiu seus cargos no Congresso Nacional. O que chama atenção para o sincericídio cometido pela emedebista refere-se ao reconhecimento da gravidade das medidas de austeridade a serem propostas e dos seus efeitos negativos para a maioria da população. Por isso, já deixa registrado seu alerta para que os responsáveis não exagerem na dose, para não matar o paciente. Uma loucura!
O atual Ministro da Fazenda também sido bastante contumaz em suas propostas e declarações bastante influenciadas pelas visões emanadas pelo financismo e por seus representantes da Faria Lima. Assim tem siso desde antes mesmo da posse de Lula para seu terceiro mandato, quando Fernando Haddad articulou a proposta do Novo Arcabouço Fiscal para substituir o Teto de Gastos de Temer ou quando das sucessivas negativas em rever as metas irrealizáveis para a inflação. Além disso, sua verdadeira obsessão em incorporar o personagem do bom mocismo junto ao sistema financeiro, o levou a assumir a austeridade fiscal de forma extremada.
Haddad: bom mocismo sincero.
Como esse conjunto de medidas supõe a redução da capacidade de o Estado brasileiro realizar as despesas necessárias ao cumprimento de suas obrigações políticas e constitucionais, Haddad tem antecipado sugestões para retirar os pisos de saúde e educação, bem como a desvinculação do salário mínimo dos benefícios previdenciários e assistenciais. Finalmente, ele é obrigado a reconhecer que não vai ter condições de recuperar o protagonismo do estatal na retomada do desenvolvimento econômico, social e ambiental.
Ele foi convidado a participar de um evento organizado pelo Banco Safra, onde esteve sendo moderado pelo ex Ministro da Fazenda de Dilma Roussef, o hiper conservador Joaquim Levy. Não por coincidência, Haddad conversou com o responsável por um enorme austericídio recessivo em 2015.
Assim, ele tenta um contorcionismo retórico e sugere dar um verdadeiro cavalo de pau naquilo que os economistas do campo progressista sempre apontamos como sendo um elemento fundamental na estratégia de um futuro que seja capaz de reduzir as disparidades e as desigualdades estruturais que sempre caracterizaram a nossa sociedade. Haddad abre a mão da inequívoca importância do Estado e acredita que o setor privado será capaz de atender atais objetivos estratégicos. Esse é o tal sonho róseo de toda a proposição neoliberal mais autêntica e sincera.
(…) “acredito que o crescimento econômico no Brasil tem tudo para ser puxado por consumo das famílias e por investimento. Não precisamos de um impulso maior do que esse para crescer, pelo contrário, acho que esses são os impulsos corretos para crescer com sustentabilidade” (…) [GN]
Outro personagem que também ofereceu sua singela contribuição ao rol dos sincericídios mais recentes é o Presidente do Banco Central (BC), Gabriel Galípolo. A exemplo de seu antigo chefe na Fazenda, ele também estava presente no Safra Macro Day. Desde que assumiu sua nova função no comando da política monetária do Brasil no início de janeiro deste ano, ele vem encontrando dificuldade para justificar a surpreendente continuidade da estratégia formulada e implementada pelo seu antecessor no cargo.
Galípolo: traição às expectativas de mudança.
Afinal, o Presidente Lula passou quase 2 anos de seu terceiro mandato criticando a política de juros elevados de Roberto Campos Neto, qualificado por ele como uma herança bolsonarista. No entanto, mesmo depois da substituição na presidência do órgão, a SELIC continuou sendo elevada a cada nova reunião do COPOM. Contra todas as expectativas de mudança que a grande maioria da população expressava, Galípolo não apresentou nenhuma alteração na rota dos juros ou na essência da política monetária. O órgão regulador e fiscalizador do sistema bancário e financeiro permaneceu atendendo exclusivamente aos interesses do oligopólio da banca privada.
No evento, o presidente do BC não se incomodou em afirmar que a política monetária arrochada se justifica no Brasil, ainda que seja observada uma reversão neste instrumento ao redor do mundo. Assim, ele alerta a população brasileira de que a alta da SELIC vai continuar e em doses ainda mais elevadas. Só faltou Galípolo finalizar sua fala com o alerta de Simone Tebet, para que isso não provoque a morte do paciente.
(…) “isso parece sugerir que a fluidez dos canais de transmissão da política monetária no Brasil não funciona como em alguns de nossos pares e em outras economias, o que tem historicamente demandado doses maiores do remédio para fazer efeito. Isso não vai ser resolvido com bala de prata” (…) [GN]
Esse é o retrato de como as lideranças associadas às elites têm tratado as questões de política econômica por aqui. Ao que tudo indica, perderam o cuidado e o recato, passando a expressar de forma mais clara e direta tudo aquilo que pensam a respeito das soluções para os problemas nacionais. Como os grandes meios de comunicação não se cansam em buscar a naturalização de tais absurdos e propostas drásticas, talvez alguns destes agentes políticos tenham perdido o pudor e a vergonha. No entanto, o que pode ser considerado ainda mais trágico é que alguns deles pertençam a um governo que se propunha a promover mudanças estruturais em nosso País.
Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.
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