No ano de 2023, pelo menos 45 mil crianças foram vítimas de estupro, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. O suficiente para lotar um estádio de futebol, como o Pacaembu.
O abuso sexual é uma violência grave, capaz de repercutir por toda a vida. Pode acontecer de formas mais ou menos sutis, com ou sem contato físico. Em mais de 80% dos casos, o abusador é um familiar ou conhecido, o que aumenta o tabu em torno do assunto. Para piorar, quando conseguem denunciar, muitas vítimas são desacreditadas.
Também não faltam exemplos de meninas obrigadas a levar adiante gestações originadas de estupros adiante – bem como de juristas que as obrigam a conviver com os violadores) A lista de horrores não para.
Como pediatra e feminista, sinto a obrigação de jogar luz sobre esse tema. Durante o Maio Laranja — mês que visibiliza a questão — recebi muitas dúvidas genuínas de alguns seguidores nas redes sociais. Por exemplo, devo notificar a suspeita antes da confirmação?
A resposta é: sim, por lei (e para sua proteção) você deve notificar. O Código Penal descreve o crime de omissão no artigo 135: deixar de prestar assistência ou socorro a uma pessoa vulnerável pode levar à punição com seis meses de prisão ou multa. E a pena pode ser aumentada conforme a gravidade do caso. A notificação geralmente é feita no Conselho Tutelar ou através do Disque 100. Quando há risco imediato, via 190, da Polícia Militar. Para pedidos de socorro urgentes devem ser direcionados ao 192, via Samu.
E devo frisar: não se trata de culpabilizar os cuidadores, pois eles também não receberam a instrução adequada. Sem as ferramentas necessárias para orientar, muitas vezes não reconhecem o problema quando ele surge. A forma como nossa rotina está organizada, com jornadas de trabalho longas e dificuldades de acesso a direitos básicos, prejudica tanto adultos quanto crianças, tornando-os vulneráveis a abusos e outras formas de violência. Aliás, em um país onde a cultura do estupro é validada como pauta política da direita conservadora, estamos todos vulneráveis.
Mais do que nunca, é preciso afirmar: oferecer educação sexual para crianças e, consequentemente, para suas famílias é indispensável. E vale repetir o óbvio: não se trata de ensinar sobre sexo para crianças. Frequentemente, me pedem recomendações de livros sobre educação sexual. Há excelentes exemplares disponíveis nas livrarias, como a coleção Pipo e Fifi de Caroline Arcari, Não Me Toca, Seu Boboca de Andrea Viviana Taubman, e Meu Corpo, Meu Corpinho de Roseli Mendonça.
Além da exposição na internet e das cobranças e responsabilidades desproporcionais para a idade, o que mais adultiza e erotiza as crianças são as reproduções sociais sobre como meninos e meninas devem se comportar. Por isso, o combate ao abuso sexual também passa por não reproduzir uma educação machista, que ensina meninos a serem violentos e viris e meninas a serem belas e recatadas. A prevenção consiste, assim, em educar as crianças — para que se protejam e para que não se tornem abusadores.
Os esforços coletivos devem ser direcionados à luta pela formação de profissionais capacitados em oferecer educação sexual, à criação de espaços de conversa para os cuidadores e familiares e ao combate ao machismo. Além disso, é preciso formar juristas para proteger, em vez de revitimizar, as crianças que precisam de ajuda. Devemos também investir em campanhas de conscientização que desmistifiquem a educação sexual e promovam um entendimento correto sobre seu papel na proteção das crianças.
É necessário que a conscientização sobre o combate ao abuso seja vista como responsabilidade coletiva, abrangendo todas as esferas da sociedade, para que possamos criar um ambiente seguro e saudável para nossas crianças.