“Siga-me, você também me amará. Vocês também se tornarão fascistas.” (M.)

por Arnaldo Cardoso

“Nós que derramamos o nosso sangue pelo nosso país, hoje fundamos as forças de combate do futuro, a vanguarda, a revolução. Hoje nasce o fascismo. […] O fascismo, uma bela criatura feita de sonhos, de ideais, de coragem, de mudança, que conquistará milhões e milhões de corações. Tenho certeza que o seu também. Siga-me, você também vai me amar. Vocês também se tornarão fascistas.”

Sim, são trechos de um discurso, mas não daquele proferido ontem em Washington D.C. pelo 47º Presidente dos Estados Unidos, entusiasticamente aplaudido por seus apoiadores e que provocou temor naqueles que valorizam a liberdade, a democracia e desejam e lutam por um mundo mais justo, pacífico e próspero para todos.

Os trechos acima reproduzidos são de um discurso de Benito Mussolini, proferido em janeiro de 1925, há exatos cem anos, na Câmara dos Deputados em Roma e que é considerado uma das peças fundadoras do fascismo, tendo em perspectiva a escalada do totalitarismo na Itália cuja Marcha sobre Roma, em outubro de 1922 é outro de seus marcos.

Na ocasião do discurso, Mussolini se encontrava pressionado a dar explicações pelo assassinato do deputado socialista Giacomo Matteotti (1885-1924) por milícias fascistas. Matteotti era o principal crítico de Mussolini e vinha realizando uma campanha para denunciar a violência fascista e os riscos daquele regime para a Itália.

É no mínimo constrangedor reconhecer as várias semelhanças entre os dois discursos e seus autores, separados por um século de história.

Sobre as semelhanças entre os dois discursos e seus autores, pode-se ressaltar a arrogância,  vulgaridade, prepotência e violência, mas também uma inegável habilidade dos oradores em dirigirem-se às massas ou àqueles que se satisfazem com bravatas e fórmulas simplórias para problemas complexos, obtendo deles engajamento e fidelidade.

Já é bem sabido que a natureza da relação desses líderes com seus seguidores não é racional, mas emocional. Como Max Weber ensinou, o motivo de submissão é a devoção, o amor ao líder.

No constructo de seus discursos é recorrente a identificação de inimigos externos, reais ou imaginários; a defesa do protecionismo e da autossuficiência econômica; a invocação da grandeza nacional e do uso da força para atingimento de objetivos; a denúncia de profanadores da moral e dos bons costumes e a exploração ardilosa da combinação contida no slogan Deus, Pátria e Família, como apontado por diversos estudiosos do fascismo histórico e do neofascismo, como o professor da Universidade de Yale, Jason Stanley, em seu livro “Como funciona o fascismo” (2018).

É importante ressaltar que, nos casos em tela, a despeito da histrionice e ridículo, ambos os discursos foram proferidos por sujeitos políticos empoderados, dispondo de recursos com extraordinária capacidade de causar danos para seus conterrâneos e para o resto do mundo, como se viu na desastrosa experiência do fascismo italiano.

E foi na Itália, no último dia 10, com o país governado pela líder – presente ontem em Washington – de um partido neofascista, com um governo integrado por políticos de orientação e histórico ligado ao fascismo, com boa aprovação popular, que seus cidadãos foram surpreendidos com uma massiva campanha publicitária em rede nacional (Mediaset, La7, TV8, Discovery, Sky, Rai e Radio24 e RTL 102.5) para divulgação de uma série de televisão produzida pelo canal Sky, intitulada “M. O filho do século” (“M. Il figlio del secolo”, no original) que o ator Luca Marinelli, interpretando o Duce, repetiu trecho do histórico discurso, quebrando a quarta parede entre o palco e o público.

Vozes críticas na sociedade italiana se levantaram condenando o tom sedutor, insidioso, da peça publicitária de divulgação da série, em contexto de preocupação com inúmeros episódios recentes de manifestações de teor fascista, inclusive violência física contra jornalistas antifascistas, ocorridos no último ano. Em conversa com um analista italiano que vive em Londres, ao expressar dúvida se algo similar ocorreria hoje na Alemanha, pois lá, Hitler e o nazismo foram compreendidos em toda a sua extensão e gravidade, ouvi dele que, na Itália, o problema é que “si tende a considerare il fascismo italiano e Mussolini, come cattivi a metà”.

Os 8 episódios da série cobrem o período desde a Fondazione dei Fasci Italiani em 1919 até o discurso de Mussolini no Parlamento em janeiro de 1925, após o assassinato de Matteotti

A série, baseada no livro homônimo de Antonio Scurati, escritor e professor da Universidade IULM de Milão, estudioso de mídia de massa, visa recontar a história de ascensão de Mussolini ao poder e da instalação do totalitarismo na Itália, explicitando a astúcia e megalomania daquele farsesco líder político que conquistou o poder e lançou o país na escuridão e depravação de seu regime, seduzindo e cooptando parcela expressiva do povo italiano.

O ator Luca Marinelli conta que o estudo da personagem, a busca de sua alma,  lhe fez perceber que “Mussolini nunca foi honesto, nem consigo mesmo. Parece sempre que ele está no palco, mesmo quando está com a família, porque sempre tem uma máscara que usa. […] Foi como interpretar um ator, porém, um ator trabalha com as próprias emoções, ele trabalhava manipulando as emoções dos outros”.

O ator avalia que “pode-se dizer que Mussolini inventou o populismo, como a arte de dar a solução mais simples e chegar ao fígado das pessoas. É uma técnica que ressurge em determinados momentos da história,como hoje. Mussolini percebia as emoções das pessoas e usava-as de uma forma muito artificial e instrumental.”

O ano de 1925 começou com aquele discurso de Mussolini no Parlamento italiano que marca uma data fundamental na história do fascismo.

O ano de 2025 começa com o discurso de Donald Trump na rotunda do Capitólio, mesmo espaço que, 4 anos atrás foi palco de uma exibição de violência e desprezo pela democracia protagonizada por hordas fascistas apoiadoras de Trump. Depois do discurso de posse, o dia histórico ainda foi completado com a assinatura de dezenas de ultrajantes decretos presidenciais deixando o ar em suspensão, com o mundo esperando o próximo passo.

Finalizando o triste espetáculo, viu-se ainda a saudação fascista do histriônico magnata da tecnologia, o homem mais rico do mundo, assessor especial do empossado Presidente dos Estados Unidos, deixando para os próximos episódios a indagação se o que veremos daqui em diante será farsa ou tragédia.

Arnaldo Cardoso, sociólogo e cientista político (PUC-SP) e escritor.

Link para a peça publicitária da série “M. O filho do século”:

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Last Update: 22/01/2025