O ex-presidente uruguaio José “Pepe” Mujica, uma das mais fascinantes figuras da política contemporânea, faleceu na tarde desta terça-feira (13), vítima de um câncer de esôfago. Daqui a uma semana, em 20 de maio, Mujica completaria 90 anos.

A doença havia avançado tão aceleradamente nos últimos dias que Lucía Topolansky, sua esposa há 40 anos, avisou nesta segunda (12) que Mujica estava sob cuidados paliativos, em fase terminal. Era um aviso de que a vida exemplar do ex-presidente estava terminando.

Em janeiro, de modo comovente, o líder uruguaio anunciou que, devido à idade avançada e a outros problemas de saúde, não teria forças para enfrentar os tratamentos convencionais. Assim, Mujica se despediu da vida pública. “Estou morrendo”, disse na ocasião o homem que, entre outras marcas profundas, era conhecido por sua lucidez, sabedoria e simplicidade.

Nascido em 20 de maio de 1935, em Montevidéu, Mujica deixou seu nome marcado na história política uruguaia e mundial por características nem sempre comuns aos homens públicos. De hábitos simples, vivia há anos num pequeno sítio nos arredores de Montevidéu, com Lucia Topolansky.

No quintal, onde costumava tomar mate com a companheira e visitantes, um Fusca 1987 azul, que virou um dos símbolos de seu despojamento — característica, aliás, comum ao povo uruguaio — dividia espaço com suas plantas e animais.

Seu desapego e sua vida modesta renderam-lhe o título de “presidente mais pobre do mundo”. Em resposta, mandou mais uma de suas frases célebres: “Não sou pobre. Sou sóbrio, de bagagem leve. Vivo com apenas o suficiente para que as coisas não roubem minha liberdade”.

Manuela

Por 22 anos, Mujica contou ainda com a companhia de Manuela, a cachorrinha de três patas que ficou famosa por aparecer com ele em fotos e durante entrevistas. A cadela – que morreu em 2018 – perdeu um dos membros após acidente com um trator dirigido pelo ex-presidente, que também era agricultor e floricultor.

Após a perda, Mujica renunciou ao cargo de senador. “Há o tempo de chegar e partir, o tempo não perdoa nem as pedras. Vou confessar para você, sabe quando tomei minha decisão? Quando Manuela morreu. Ainda sinto sua falta”, declarou em uma entrevista para a TV Telemundo.

Sobre a faceta de floricultor, vale lembrar de uma curiosidade: em 2013, um perfume feito com essência de flores e ervas de seu sítio representou o Uruguai na Bienal de Veneza.

O perfume “Pepe” nasceu como uma sátira do artista Martín Sastre aos produtos de luxo de grandes marcas de cosméticos e ganhou forma fictícia num frasco roxo exibido num vídeo de 2012, cujo nome era “U de Uruguay”. Mas, depois, o produto acabou sendo, de fato, feito em edição limitadíssima.  Foram três frascos, um dado ao presidente, um para Sastre e um para ser leiloado com fins beneficentes, segundo a agência EFE.

Na presidência

Entre 2010 e 2015, Mujica foi o 40º presidente do Uruguai, o segundo de esquerda do país, depois de Tabaré Vasquez, seu antecessor. A eleição de Mujica ocorreu em meio à onda de líderes de esquerda e progressistas que passaram a ocupar o poder de seus países na América Latina a partir dos anos 2000.

Em outubro de 2009, ao comemorar a vitória da Frente Ampla em segundo turno, o ex-guerrilheiro tupamaro, preso por mais de uma década pela ditadura e alçado ao mais alto posto da nação, pronunciou mais uma de suas falas marcantes: “Sabe de uma coisa, povo? O mundo está de pernas para o ar. Vocês deveriam estar aqui (no palanque), e nós aí embaixo, aplaudindo”, discursou. “Elegemos um governo que não é dono da verdade e precisa de todos. Custou-me uma vida entender que o poder está nas massas.”

Durante seu mandato, Mujica se tornou reconhecido internacionalmente pelas medidas avançadas que adotou sobre temas que eram tabu em muitos países. Mesmo no mais alto cargo do país, ele renunciou a viver na mansão presidencial à qual tinha direito e doava 90% de seu salário, que girava em torno US$ 12 mil mensais.

“Temos de escapar da escravidão que impõe a dependência material, que é uma das coisas que mais roubam tempo na sociedade contemporânea”, disse certa vez, ao semanário Búsqueda. “Se você se deixa arrastar pelas pressões da sociedade de consumo, não existe dinheiro que alcance, não tem fim, é infinito”, completou.

Sob seu governo, o Uruguai se tornou, em 2013, o primeiro país do mundo a legalizar a produção e a venda de maconha, iniciativa que, ao assegurar ao Estado o controle sobre o uso da droga, ajudou a combater o narcotráfico. Ao mesmo tempo, a medida evita prisões desnecessárias de usuários, a superlotação das prisões e o fortalecimento de facções internas, como ocorre no Brasil

Também foi sob seu mandato que, naquele mesmo ano, o Uruguai passou a permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Um ano antes, o aborto foi legalizado, garantindo às mulheres o direito de interromper a gravidez de maneira segura.

A Frente Ampla, aliança política que teve Mujica como um de seus principais nomes, foi responsável por profundas mudanças sociais no país, que tiveram início antes de seu governo, ainda com Tabaré Vasquez, continuaram durante seu mandato e se estenderam para além dele.

Entre 2005 a 2020, o Uruguai teve uma queda drástica no índice de pobreza, que passou de 30% para 8% – praticamente não havia pessoas em situação de rua. O crescimento do país foi constante e o desemprego despencou de 22% em 2005 para 6,9% em 2015. Além disso, nesse mesmo período de 15 anos, o PIB per capita do país cresceu três vezes, saltando de US$ 4,72 para US$ 15,56.

Essas e muitas outras conquistas resultaram, em grande medida, do trabalho de toda sua equipe e do governo montado pela Frente Ampla, mas também à visão profundamente humanista que o ex-presidente sempre carregou e que se fortaleceu durante os anos em que esteve preso.

Líder tupamaro

Um dos líderes do Movimento de Libertação Nacional Tupamaro — opositor do crescente autoritarismo que tomava conta do país e da América Latina e que foi duramente perseguido pela ditadura militar uruguaia —, Mujica foi preso quatro vezes, duas das quais conseguiu fugir.

Sua prisão mais longa se deu entre entre 1972 — após sobreviver a seis tiros — e 1985, quando a democracia foi restabelecida. Em parte desse período, ele ficou numa solitária; em outros tantos momentos, foi brutalmente torturado. Sobre a prisão, declarou mais tarde, com bom humor: “Não enlouqueci porque já era louco”. Em outra ocasião, salientou: “Depois da pena de morte, a solidão é um dos castigos mais duros”.

Sua vida e as lições que deixou foram ricamente contadas em diversos livros e filmes, entre os quais, três produções cinematográficas recentes que ganharam o mundo. O mais novo é o documentário Os Sonhos de Pepe (2024), de Pablo Trobo, que foi cinegrafista durante sua campanha presidencial.

Uma Noite de Doze Anos (2018), de Álvaro Brechner, conta, de maneira ficcional, como foram os anos de prisão de Mujica e seus companheiros. Por fim, El Pepe, uma Vida Suprema (2018), de Emir Kusturica, esmiúça a forma de pensar e o aprendizado que o ex-presidente teve ao longo de sua vida e que o fez estar entre alguns dos mais sábios homens públicos da contemporaneidade.

Após uma rica e admirável trajetória, guiada, sobretudo, pela luta para construir uma nova sociedade, justa e igualitária, Pepe acabou sendo derrotado pelo câncer. Meses antes, quando participou de comício do então candidato à presidência e atual presidente, Yamandu Orsi, Mujica já previa que o fim se aproximava. “Quando esses braços se forem, haverá milhões de braços na luta. Obrigado por existirem. Até sempre”. Nós é que agradecemos, Pepe!

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 13/05/2025