No contexto das celebrações dos 80 anos da libertação de Berlim, revisitar a série soviética Libertação (Osvobozhdenie), dirigida por Yuri Ozerov entre 1969 e 1971, é uma forma de ação política. Trata-se de um conjunto de cinco filmes, realizados pela Mosfilm e com apoio do Estado soviético e de governos da Europa Oriental na época (como Alemanha Oriental, Polônia e Iugoslávia). Foi exibido amplamente em festivais e redes de televisão em diversos países. Sua proposta foi reconstruir os principais eventos do front oriental da II Guerra Mundial, do cerco de Kursk à queda de Berlim, e mostrar o papel central da União Soviética na derrota do nazismo.

Trata-se de uma resposta à forma como Hollywood capturou o tema da II Guerra Mundial e inundou os cinemas de todo o mundo com uma visão que eternizou seus soldados como os únicos heróis do conflito. A série procura representar não só o front oriental, mas também apresentar a visão soviética sobre a Guerra Patriótica que matou, ao que se sabe, mais de 30 milhões de pessoas só nessa frente de combate. Do clássico Casablanca (1941) ao péssimo Dunkirk (2017), o nosso imaginário tem sido povoado pela propaganda americana e inglesa. Vale ressaltar que, nas últimas décadas, o grande cineasta do conflito foi o americano Steven Spielberg, com filmes como Império do Sol (1987), A Lista de Schindler (1993), O Resgate do Soldado Ryan (1998) e obras mais leves como Indiana Jones e os Caçadores da Arca Perdida (1981), sobre a busca por uma poderosa relíquia judaica que é capaz de queimar nazistas vivos.

O descartável Capitão América (2011 a 2016) e o apologista de genocídio Oppenheimer (2023) continuam a tradição. No entanto, é importante lembrar que todos esses filmes formam um corpus de ideologia difícil de combater. Eles são muito eficazes em sua missão de nos fazer conhecer a II Guerra Mundial do jeito que o imperialismo quer. No caso de Spielberg, vale um comentário a mais: trata-se de um sionista que até agora não se manifestou com contundência contra o genocídio em Gaza, fazendo declarações ambíguas e condenando o que ele considera antissemitismo. 

Por isso, assistir a Libertação é, antes de tudo, uma oportunidade única de conhecer um contraponto a essa visão dominante. Muito mais do que um registro histórico, é uma obra de grande sofisticação estética e política. A série insere-se no esforço cultural do governo de Leonid Brejnev para contrapor a visão hegemônica sobre a narrativa da Guerra, reforçar os laços de identidade entre os povos do leste europeu, honrar a lembrança dos combatentes e manter viva a memória dessa campanha para as gerações mais recentes. Alguns podem criticar omissões, chamar de propaganda soviética ou até mesmo de realismo socialista. Mas, pelo amor dos deuses, o que é Bastardos Inglórios (2009), de Quentin Tarantino, louvado por milhares de esquerdistas pequeno-burgueses, senão um revisionismo histórico sionista? Além disso, é inegável a superioridade formal de Libertação se comparado a filmes como esse.

No último final de semana, assisti ao segundo filme da série, A Ruptura, que se concentra na reconquista da cidade de Kiev pelas forças soviéticas em novembro de 1943, após mais de dois anos de ocupação nazista. A narrativa começa imediatamente após os eventos do primeiro filme, O Arco de Fogo, quando o Exército Vermelho obtém uma vitória decisiva em Kursk, abrindo caminho para uma ofensiva rumo ao oeste.

O centro dramático de A Ruptura é a travessia do rio Dnieper, uma das operações militares mais complexas da campanha soviética. O enredo acompanha diferentes unidades militares — desde engenheiros de combate, responsáveis por construir pontes improvisadas sob fogo cerrado, até tanquistas e infantaria que atravessam o rio em balsas e jangadas. O filme destaca o caráter coletivo e multifacetado da guerra: há foco nos comandantes, mas também nos soldados rasos, nos trabalhadores locais e nas mulheres que lutam e colaboram na resistência clandestina.

A cidade de Kiev é mostrada como território arrasado, mas que resiste. A população local, mesmo sob ocupação, organiza-se em células de sabotagem e inteligência, fornecendo apoio às tropas soviéticas que se aproximam. O filme evita a forma simples do melodrama ou da narrativa clássica, com um herói bem definido, para retratar a guerra: há perdas humanas significativas, conflitos internos, momentos de hesitação e sacrifícios dolorosos. Ainda assim, a mensagem central é de otimismo, pois a libertação da capital ucraniana aparece como um passo fundamental para a virada da guerra e para a reafirmação da união dos povos soviéticos.

Politicamente, A Ruptura cumpre um papel simbólico. Ao representar a libertação de Kiev por russos, ucranianos, bielorrussos e outras etnias do Exército Vermelho, o filme busca elevar, naquele momento, a fraternidade socialista contra o inimigo externo, no auge da Guerra Fria. A cidade é símbolo de unidade — e não de divisão —, o que atualmente contrasta fortemente com a Kiev que passou a ocupar o imaginário contemporâneo, especialmente com o golpe de estado e a violência na Praça Maidan em 2014 e o uso da Ucrânia como teatro da guerra por procuração da Otan contra a Rússia desde 2022.

Do ponto de vista da forma cinematográfica, o filme mantém um estilo próximo ao épico em que a representação da campanha militar é o centro da ação: os personagens encenam as decisões tomadas e que levaram aos resultados alcançados pelo Exército Vermelho. Uma cena provocadora se dá, em preto e branco, na reunião entre Stalin, Churchill e Roosevelt em Teerã. Stalin cobra a abertura do front ocidental e a invasão da França. A indecisão dos aliados é visível e quebra com a ilusão do heroísmo americano. Outra cena interessante está no atentado a bomba, em Kiev, por grupos da resistência dentro de um cinema lotado de generais alemães. Alguém aí pensou em Bastardos Inglórios de novo? Pois é…

Há incríveis sequências de batalha, com tanques e aviões autênticos e montagem cuidadosa das cenas de combate. A protagonista deste filme é a campanha militar, portanto, nem mesmo os personagens políticos são colocados em posição importante: os fatos representados falam por si.  Poucos são os momentos de melodrama que visam retratar mortes heroicas e sacrifícios anônimos, como diálogos entre soldados, encontros amorosos, cartas de família e funerais, revelando as marcas emocionais do conflito.

A batalha por Kiev é representada em A Ruptura com ênfase no confronto de tanques, explosões de proporções espetaculares e cenas que reproduzem os uniformes, armamentos e topografias do período. Sob a lente da crítica materialista, percebe-se que o filme não apenas mostra as conquistas do Exército Vermelho, mas busca restaurar a posição dos soviéticos na libertação da Europa Oriental, um gesto que ressoa profundamente no presente. 

Hoje, quando o Ocidente tenta apagar o papel da URSS na vitória sobre o nazismo e reescrever a história como se a Europa tivesse sido libertada unicamente pelos Aliados ocidentais, a série Libertação volta a ter uma função contra-hegemônica: lembrar, por meio da arte, que o sacrifício humano da guerra esteve majoritariamente no leste, e que a memória da libertação é também uma disputa.

Mais ainda, o filme ajuda a compreender o uso contemporâneo da memória na geopolítica. Se Kiev é hoje apresentada pela máquina de propaganda imperialista como símbolo da resistência ao “autoritarismo russo”, em A Ruptura ela aparece como cidade mártir da agressão nazista, cuja libertação é um feito coletivo dos povos soviéticos. O cinema pode ser usado tanto para consolidar quanto para contestar versões dominantes da história.

Assistir à série é, portanto, um ato político diante do revisionismo histórico que marca a influência imperialista no mundo hoje. A obra de Ozerov precisa ser reconhecida como um marco de uma outra maneira de contar a história – uma que parte da coletividade, da luta e da memória viva dos povos trabalhadores. No front da cultura, como no da guerra, a luta segue em curso.

Os cinco filmes da série Libertação:

O Arco de Fogo (Ognenniy Duga, 1969)
Retrata a Batalha de Kursk, uma das maiores batalhas de tanques da história, e marca o início da virada soviética contra as forças nazistas.

A Ruptura (Proryv, 1969)
Foca na libertação de Kiev em 1943, mostrando a retomada da cidade pelas tropas soviéticas e o papel do povo ucraniano na resistência antifascista.

A Direção Principal do Golpe (Napravleniye Glavnogo Udara, 1970)
Mostra a preparação para a ofensiva final contra a Alemanha nazista, incluindo os debates estratégicos entre os Aliados e a intensificação da ofensiva soviética.

A Batalha por Berlim (Bitva za Berlin, 1971)
Reencena a tomada de Berlim pelas forças soviéticas, com destaque para os combates urbanos e a aproximação do fim da guerra na Europa.

A Última Investida (Posledniy Shturm, 1971)
Conclui a série com a rendição alemã e o simbolismo do Exército Vermelho içando a bandeira soviética sobre o Reichstag, selando a vitória definitiva contra o nazismo.

Libertação está em cartaz no canal do CPC Umes no YouTube. É grátis.

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Last Update: 30/05/2025