
Por Gabrielly Preato
Da Página do MST
Durante a 16ª Feira Estadual da Reforma Agrária Cícero Guedes, que teve início nesta segunda-feira (8), no Largo do Carioca, Centro do Rio de Janeiro, o seminário “Reforma Agrária Popular na atualidade: a Luta por Terra e Território” debateu as conquistas, desafios e a urgência de implementar de políticas públicas que garantam vida digna no campo e na cidade.
O seminário teve a mesa composta por Mateus Santos, dirigente nacional do MST-RJ; José Emílio, vice-presidente da ACQUILERJ; e mediado pela Gabriela Haua do setor de Formação do MST-RJ, reunindo vozes de diferentes territórios – assentamentos, quilombos e favelas, dentro de um dos eixos principais da feira: a produção de alimentos saudáveis como expressão concreta da Reforma Agrária Popular. Mas, como lembraram alguns participantes, a luta por terra também é disputa por memória, identidade e existência.
Quilombos sob pressão e a disputa pela narrativa do território

José Emílio, trouxe a perspectiva dos quilombos fluminenses diante do avanço da especulação imobiliária e da omissão histórica do Estado na política de habitação e moradia. Seu relato sobre o Quilombo da Pedra Bonita expôs como a ancestralidade quilombola enfrenta, há décadas, tentativas institucionais de apagamento.
“Nós, quilombolas, vemos que a nossa ligação com a terra está associada à nossa ancestralidade. A Pedra Bonita, por exemplo, é reconhecida como ponto turístico. Nosso território é formado por sítios históricos e agrícolas, onde antes era exploração de carvão. Quando mudou essa atividade, nossa família mudou para a agricultura. E essa agricultura, que todo mundo conhece como ‘relírio’, foi apagada pelo Estado quando houve a pretensão de se fazer ali um parque nacional”, conta José Emílio.
A disputa, portanto, não é apenas econômica ou territorial — é também simbólica na defesa do direito de existir enquanto comunidade negra tradicional.
Agricultura urbana e resistência na favela
Da Serra da Misericórdia, nos Complexos da Penha e do Alemão, Scarlet Cruz, que integra o Centro de Integração na Serra, levou ao debate a realidade da agricultura urbana em territórios estigmatizados pela violência de Estado. “A gente enfrenta um desafio duplo, talvez triplo, que é fazer agricultura urbana na favela. […] Recentemente aconteceu uma chacina na nossa Serra, e foi noticiado que a Serra era um local de desova de corpos do crime. Mas nosso território é um lugar de plantar, de colher, de bem viver. A Serra não é do crime”, conclui Scarlet.
Ela reforçou que a Serra da Misericórdia é um território de produção de “comida de verdade” e de cuidado comunitário, onde alimentos são cultivados e distribuídos entre famílias faveladas. Um contraponto, na prática, ao discurso que criminaliza a vida nas periferias.
O protagonismo das mulheres e a força dos territórios produtivos

O seminário também contou com espaço para apresentação de experiências bem-sucedidas de comercialização por meio de programas públicos, como o PAA e o PNAE. A resposta veio na fala de dona Elza de Castro do PDS Osvaldo de Oliveira. “As mulheres se juntaram e fizeram o coletivo Margaridas do Karucango. Começamos a enviar merenda escolar ao município de Macaé e hoje cerca 107 escolas recebem nossa produção. Também entregamos para os CRAS e instituições de caridade, com mais de 300 famílias assistidas. E este ano começamos a entregar nossa produção para consolidar aqui no Rio de Janeiro”, explica dona Elza.
A experiência evidencia o papel decisivo das mulheres na estruturação da produção de alimentos e na distribuição que hoje alcança escolas, cozinhas solidárias e famílias em situação de vulnerabilidade social.
Educação, saúde e o futuro dos territórios
Os participantes também foram questionados sobre as condições do acesso à educação e à saúde nos territórios. A mediação apontou a necessidade de fortalecer uma educação do campo que valorize culturas quilombolas e modos de vida locais, garantindo permanência e dignidade às novas gerações. Foi um chamado para que o Estado reconheça, de forma concreta, o direito de existir nesses territórios, tema recorrente entre os presentes.
Na avaliação da região Sul Fluminense, representada por Edinéia Araújo, a feira simboliza um ano de vitórias. “Agora, a gente vai começar a colher os frutos. Esta feira veio concretizar, trazendo produção da região sul, tanto para as cozinhas quanto para as bancas”, afirmou.
Mateus Santos destacou o caráter simbólico e celebrativo da feira em ocorrer sempre em dezembro. “Fazer essa feira no final do ano é um balanço de todas as ações do MST ao longo do ano e também uma devolutiva. O resultado é isso: ter terra para produzir alimento saudável e combater a fome”, ressaltou. Ele encerrou o debate reafirmando o compromisso coletivo da partilha. “No final da feira, vamos socializar nossos alimentos para o coletivo que produz a alimentação. Vamos partilhar o que a gente tem de melhor”, conclui o dirigente do MST.
Cultura, espiritualidade e resistência quilombola
Mara Soares, do Quilombo do Camorim, em Jacarepaguá, na Zona Oeste, falou sobre sua experiência e encerrou o debate trazendo canto, memória e espiritualidade ancestral. “Estamos no olho do furacão da especulação imobiliária. Nossa vida é de muita luta e resistência. Meu trabalho são as plantas medicinais. Espero que a gente tenha belos dias nessa feira, de encontros, celebração e de poder ouvir os companheiros”, finalizou com um canto místico.
Um seminário que reafirma caminhos
O encontro mostrou que a Reforma Agrária Popular é feita de múltiplas frentes: da luta quilombola à agricultura urbana; da circulação solidária de alimentos à educação do campo; da defesa de territórios ameaçados à celebração de identidades ancestrais.
Em comum, todas as falas apontaram para o mesmo horizonte: terra, trabalho, cultura, alimento e dignidade como direitos inegociáveis. Mais uma vez, a 16ª Feira Estadual da Reforma Agrária se consolida como espaço de encontro, celebração e reafirmação política, onde a luta se renova, se fortalece e se compartilha entre os povos.
Semear a terra, alimentar os povos e defender a vida!
*Editado por Solange Engelmann