Aos 90 anos, Luiza Erundina continua engajada na mobilização popular. Em seu sétimo mandato parlamentar consecutivo, a deputada acaba de lançar, em parceria com o Escritório Modelo Dom Paulo Evaristo Arns, da Faculdade de Direito da PUC de São Paulo, o manifesto Sementes da Esperança, um chamado para que os brasileiros voltem a ser protagonistas da própria história. A ideia é apoiar a formação de milhares de núcleos de base “autônomos, auto-organizados, multipartidários e plurais” por todo o Brasil, que definirão suas pautas e prioridades. Ex-prefeita de São Paulo, com uma gestão marcada por iniciativas inovadoras, como os mutirões da habitação e o orçamento participativo, Erundina explica, na entrevista a seguir, por que é tão importante semear a esperança de um mundo melhor, construído pelo esforço de todos os cidadãos. Além disso, ela analisa os rumos do governo Lula e a relação de seu partido, o PSOL, com o Planalto.
CartaCapital: Há tempos analistas alertam que a esquerda se acomodou aos gabinetes e deixou o trabalho de base de lado. Atualmente, quem tem maior presença nas periferias são as igrejas evangélicas, a maior parte delas de perfil conservador. Dá para recuperar o terreno perdido?
Luiza Erundina: É sempre possível resgatar experiências marcantes da história do País, como a do período de redemocratização, talvez o momento mais importante da vida política brasileira, caracterizado por uma efetiva participação popular. O primeiro poder é o povo. Temos o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, mas, antes desses três poderes, existe o cidadão. Todo o poder emana dele. Lamentavelmente, nos últimos anos, a política tem se restringido aos espaços institucionais, com pouca participação da sociedade civil organizada e dos setores populares nos governos. Grande parte da crise política que vivemos hoje decorre desse distanciamento. Por isso, é fundamental resgatar o interesse dos brasileiros pela política, algo que faz parte da essência do ser humano. Todos nós precisamos nos sentir protagonistas do nosso tempo e tomar parte nas decisões da sociedade.
“Lula possui uma dependência extrema do Congresso. Só a mobilização popular poderia modificar a correlação de forças”
CC: O manifesto Sementes da Esperança destaca a importância de haver encontros presenciais nos Núcleos de Base, de valorizar o “olho no olho”. A juventude está concentrada demais na militância virtual?
LE: Não rejeitamos a tecnologia, queremos aproveitar os meios digitais. Lá atrás não havia redes sociais, mas hoje elas fazem parte do nosso cotidiano. O uso dessas ferramentas pode tornar a política mais atrativa para os jovens. No entanto, entendemos que a interação presencial também é fundamental. Essa iniciativa busca promover a educação política do nosso povo no sentido freiriano, como um processo de emancipação cidadã. No passado, o PT fazia isso muito bem: seus núcleos de base deliberavam sobre as questões mais importantes do partido. Não se trata de algo inédito. Quantos de nós nos formamos nesses espaços? Os núcleos se organizavam onde o povo estava: em associações de bairro, sindicatos, movimentos sociais, comunidades… Hoje, a internet permite mobilizar os indivíduos em uma escala muito maior, mas o contato pessoal continua indispensável. É no olho no olho que percebemos reações e construímos vínculos mais fortes.
CC: Como a senhora avalia o governo Lula neste terceiro mandato?
LE: Primeiro, é preciso considerar as condições que levaram à formação deste governo. Nos mandatos anteriores, Lula foi eleito para cumprir o projeto do PT, que havia sido referendado pelas urnas. Agora, ele lidera um governo de coalizão, sustentado por um amplo arco de alianças que reúne forças políticas muito heterogêneas – e, em alguns casos, até heterodoxas. Implementar um projeto nesse contexto é um grande desafio. O presidente sempre precisou fazer concessões, mas agora a dependência do Congresso, sobretudo dos partidos de direita, é extrema. Só a mobilização popular poderia modificar a correlação de forças. Fui prefeita de São Paulo e não tinha maioria na Câmara Municipal. Só conseguimos avançar e inovar graças à participação da população. Era o povo quem nos dava sustentação política para agir e também definia as prioridades, decidia sobre a execução do orçamento. Infelizmente, isso não ocorre no atual governo. Lula não tem autonomia, independência, nem força suficiente para tomar decisões estratégicas, talvez até se ressinta de não poder exercitar os mecanismos de democracia direta previstos na Constituição, para escapar dessa dependência. A disseminação dos núcleos de base visa justamente fortalecer o poder popular, para que o cidadão tenha condições de fazer valer sua vontade.

Ruído. “Não sei sequer se esse convite existiu”, diz Erundina, ao comentar a possível nomeação de Boulos para a Secretaria-Geral da Presidência – Imagem: Pablo Valadares/Agência Câmara
CC: Pensando no cenário eleitoral de 2026, a senhora diria que é mais provável a reeleição de Lula ou o retorno da extrema-direita ao poder?
LE: Lula enfrenta dificuldades, mas ainda é possível reverter esse cenário com mudanças que o próprio presidente já começou a implementar. Com a reforma ministerial, é necessária também uma correção da linha programática e das estratégias do governo. Há tempo para aglutinar forças do campo popular e manter a liderança e o protagonismo de Lula, mas, à medida que as eleições se aproximam, essa tarefa se torna mais difícil. Ele precisa agir com habilidade e rapidez para promover essas mudanças, abrindo espaço para a soberania popular. A sociedade civil organizada deve ser ouvida e ter condições reais de influenciar as decisões estratégicas. Só assim Lula poderá reduzir essa dependência extrema do Congresso.
CC: Como a senhora avalia a possível nomeação do deputado Guilherme Boulos para a Secretaria-Geral da Presidência?
LE: Não posso opinar, pois não tenho informações do partido nem dele sobre essa nomeação. Não sei sequer se esse convite realmente ocorreu, se é uma possibilidade concreta ou apenas especulação da mídia. O PSOL já faz parte do governo, ocupa o Ministério dos Povos Indígenas, com Sônia Guajajara. Sinceramente, acho pouco provável que Lula ceda outra pasta a um partido como o nosso, que tem uma bancada pequena no Congresso, por mais aguerrida e qualificada que seja. Normalmente, essas articulações consideram o número de votos que cada legenda pode garantir na Câmara ou no Senado, e temos apenas 14 deputados. Ainda assim, nossa participação é significativa, não apenas pela competência da bancada, mas também pela autonomia em relação ao governo. Diferentemente de outras legendas, não temos um atrelamento rígido ao Planalto, e deve ser assim mesmo. Em um governo de coalizão, nenhuma força política deve desaparecer ou perder sua identidade, especialmente um partido ideológico e programático como o PSOL. Somos da base, mas não de forma incondicional, a ponto de cedermos naquilo que é princípio, essência e fundamento da nossa proposta partidária.
“Acho pouco provável que Lula ceda outro ministério ao PSOL, que tem uma bancada pequena no Congresso”
CC: Existe um racha no PSOL em relação a esse tema, isto é, entre ocupar mais espaços no governo ou manter uma postura mais independente?
LE: Não há um racha, e sim uma discussão interna. Um partido democrático debate tudo o tempo todo. A questão central é: até que ponto ocupar um ministério limita a capacidade do partido de discordar das decisões do Executivo? Não podemos nos posicionar publicamente contra propostas que afrontem nossos princípios? Sempre foi assim. Lembro da época de Dilma Rousseff: o PSOL estava na base, mas manteve sua independência e nem sempre votava com o governo. A divergência é saudável e nos fortalece. Debatemos essas questões constantemente. Não se trata de uma crise, mas de uma concepção. Partidos programáticos têm compromissos com setores específicos da sociedade. No nosso caso, são os trabalhadores, as trabalhadoras, os setores populares. Lutamos por igualdade de direitos, por oportunidades para todos, por inclusão social. O PSOL nasceu para defender essas bandeiras, não para ser um apêndice de outra sigla. •
Publicado na edição n° 1353 de CartaCapital, em 19 de março de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Semeando a esperança’