Entre a Semana Santa e o feriado de 21 de abril, enquanto muitos descansavam, milhões de brasileiros varriam o chão da loja, abasteciam prateleiras e atendiam no caixa. Cumpriam a escala 6×1 — um modelo legalizado que suga seis dias da semana do trabalhador e devolve apenas um de descanso.

“Trabalhadores sem direito ao feriado, com sua jornada manipulada pelo banco de horas, por compensações que nunca chegam ou pela ameaça de desemprego”, escreveu nas redes sociais a deputada federal Erika Hilton (Psol-SP) no fim do feriadão.

A crítica acompanha a agenda política da parlamentar, autora da Proposta de Emenda à Constituição (PEC)  8/2025. A escala 6×1, embora não mencionada explicitamente na Constituição, é permitida — o limite de 44 horas semanais viabiliza esse modelo, amplamente adotado. A PEC prevê a redução da jornada para 36 horas semanais, em quatro dias, e o fim da escala 6×1.

A pressão popular em defesa da medida deve se intensificar em breve. Rick Azevedo, principal figura do movimento Vida Além do Trabalho (VAT) e vereador no Rio de Janeiro, convocou manifestações para o 1º de maio, chamadas de “Feriadão Prolongado”: atos de rua no Dia do Trabalhador e, no dia seguinte, um protesto silencioso — com a orientação de que todos fiquem em casa.

Rick não vem do meio político nem sindical. Antes de ser eleito, era caixa de farmácia — foi quando publicou o vídeo que mudaria sua vida. No TikTok, falou da rotina exaustiva da escala 6×1, chamou o regime de “escravidão ultrapassada” e perguntou: “Quando é que nós, da classe trabalhadora, vamos nos revoltar?”.

No mesmo dia em que gravou o vídeo que mudaria sua vida, Rick havia publicado outros quatro — todos sobre Beyoncé. Entre o caixa da Droga Raia e o celular, ele virou a chave da diva pop para a denúncia social.

O vídeo viralizou. O que veio depois foi um movimento nacional, uma petição com quase 3 milhões de assinaturas, um mandato de vereador — o mais votado do PSOL no Rio de Janeiro — e, talvez, uma mudança constitucional.

A PEC foi protocolada em fevereiro por Erika Hilton, correligionária de Rick, com 234 assinaturas — número acima do mínimo exigido — e agora aguarda tramitação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara.

A viralização do vídeo de Rick — denunciando a rotina de quem trabalha seis dias por semana por um salário mínimo — impulsionou a petição com milhões de assinaturas e deu lastro político à proposta do PSOL.

Mais de 34,6 milhões de trabalhadores brasileiros cumprem jornadas superiores a 40 horas semanais, segundo a Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), do Ministério do Trabalho e Emprego. A maioria atua nos setores de comércio e serviços — onde a escala 6×1 é regra.

O padrão brasileiro não é isolado. Um relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) mostra que, em boa parte do mundo, jornadas longas ainda são a norma. Mas há exceções. França (35 horas), Alemanha (35 horas, com debate para reduzir a 28), Bélgica (38 horas) e Espanha (37,5 horas) aparecem como exemplos de países que já caminham no sentido oposto — com menos horas e mais tempo livre.

No Brasil, um levantamento do Sindicato dos Comerciários do Rio de Janeiro ajuda a dimensionar a precarização: operadores de caixa, atendentes de loja e trabalhadores de serviços gerais formam a base de uma pirâmide trabalhista com pouca ou nenhuma perspectiva de crescimento profissional.

Até 79% desses profissionais não enxergam possibilidade de crescimento na carreira, e 97% dos 3.027 respondentes que trabalham sob a escala 6×1 são favoráveis ao fim dessa jornada.

São também os mais expostos a longos deslocamentos e baixos salários. Em São Paulo, um trabalhador precisa de 125 horas de trabalho para comprar a cesta básica, que consome 61,7% do salário mínimo. Em Aracaju, são necessárias 80 horas — ainda assim, quase 40% da renda mínima.

A saúde dos trabalhadores está em colapso. Afastamentos por transtornos como ansiedade e depressão cresceram quase 70% entre 2023 e 2024, segundo levantamento da Fiocruz.

Já a Repórter Brasil mostrou que, das 20 ocupações com mais acidentes de trabalho registrados em 2022, 12 estão entre as que têm as jornadas mais extensas.

“É uma aberração que, com tanto avanço, o trabalhador não ganhe tempo, só cansaço”, afirmou o sociólogo Ricardo Antunes, professor titular da Unicamp, em entrevista ao podcast Pauta Pública.

Para ele, a escala 6×1 é um “absurdo normalizado” e faz parte de um “moinho satânico” — expressão que usa para descrever a lógica de exploração contínua intensificada pelo avanço tecnológico e pelo neoliberalismo.

Apesar das evidências, a proposta enfrenta forte resistência no setor empresarial. Antes do último feriado, a Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg) divulgou estudo prevendo queda de até 16% no PIB caso a escala 6×1 seja extinta. A entidade alega que a mudança aumentaria os custos, causaria desemprego e geraria impactos inflacionários.

O presidente da Fiemg, Flávio Roscoe — um entre tantos empresários contrários à PEC — é cotado para compor, como vice, uma chapa para disputar o governo mineiro em 2026, encabeçada pelo deputado Nikolas Ferreira (PL), também crítico da proposta. Ferreira a classificou como “medida populista” e disse que foi “terrivelmente elaborada”.

O embate opõe duas visões de país. De um lado, trabalhadores, sindicatos e movimentos sociais denunciam a exaustão imposta por um modelo que ignora direitos básicos como convivência familiar, saúde e estudo.

De outro, setores empresariais e políticos tratam jornadas extenuantes como “produtividade” e veem qualquer tentativa de mudança como ameaça ao crescimento econômico.

A tramitação da PEC ainda está no início. O texto precisa ser aprovado na CCJ, depois por uma comissão especial, e passar por dois turnos na Câmara dos Deputados, com apoio de ao menos 308 parlamentares em cada um. Em seguida, segue ao Senado, onde também precisa ser aprovado em dois turnos, com anuência de dois terços dos senadores.

No governo federal, o apoio à proposta é discreto. O presidente Lula (PT) não se manifestou publicamente, o que levou Rick Azevedo a criticar a postura do ex-líder sindical. “Falta, principalmente, apoio do Lula”, disse o vereador em entrevista a O Globo.

Ainda assim, há sinais de abertura. Erika Hilton se reuniu com a ministra da Secretaria de Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, que prometeu articular o diálogo com os ministérios da Fazenda, do Trabalho e da Previdência.

Além do “Feriadão Prolongado” liderado por Rick, as centrais sindicais organizam uma grande manifestação unificada para o 1º de Maio. A defesa da PEC 8/2025 será um dos principais temas da mobilização.

Em outra frente de mobilização, a CUT, as Frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo lançaram um plebiscito popular. A ideia é consultar a população sobre a jornada e a escala 6×1, com comitês organizados em todo o país. O objetivo é transformar a pressão social em argumento político.

Campanhas de rua, panfletagens e até blocos de carnaval têm ajudado a manter o tema em pauta. Em dezembro de 2024, trabalhadores do Grupo Mateus — uma das maiores redes de supermercados do país — realizaram paralisações no Maranhão contra a jornada exaustiva.

Não se trata apenas de horas no relógio. Trata-se de tempo para viver, estudar, cuidar, amar e descansar. Depois de décadas sendo obrigados a normalizar a exaustão, os trabalhadores do Brasil parecem, enfim, prontos para questioná-la. Ou, como canta Beyoncé — a diva pop predileta de Rick Azevedo: “You won’t break my soul.”

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Last Update: 22/04/2025