Em 2021, o Conselho Nacional de Justiça lançou o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, com o objetivo de orientar magistradas e magistrados a incorporar em suas decisões a compreensão das desigualdades estruturais que marcam a sociedade brasileira. No entanto, quatro anos depois, dados divulgados pelo próprio CNJ indicam que a aplicação desse protocolo ainda é tímida, muitas vezes restrita a processos de violência doméstica.

Questões estruturais fundamentais — como direito penal, direito civil, propriedade, saúde e moradia — seguem sendo julgadas sem considerar as desigualdades de gênero, raça e classe que impactam concretamente a vida das partes envolvidas. Não se trata da ausência de normativas ou diretrizes, mas da necessidade de compromisso político e institucional para sua efetiva implementação.

Esse desafio está intimamente ligado à própria composição do sistema de Justiça. No Tribunal de Justiça de São Paulo, o maior do país, apenas 17% dos desembargadores são mulheres e, entre os 448 magistrados, apenas um se declara preto. Essa realidade evidencia que o Judiciário ainda não reflete a diversidade racial e de gênero da população brasileira, limitando a incorporação de perspectivas inclusivas no processo de interpretação e aplicação das leis.

Falar em julgamento com perspectiva de gênero e de raça implica reconhecer que a diversidade precisa estar presente não apenas no discurso, mas também na formação, na composição e nos espaços de poder dentro do sistema judicial. Construir um Judiciário mais representativo é condição essencial para decisões que dialoguem de forma mais justa e equânime com a realidade social do país.

O julgamento com perspectiva de gênero e raça é, acima de tudo, um julgamento com perspectiva de humanidade. Exige reconhecer que o direito, quando interpretado sem considerar as desigualdades históricas, corre o risco de reproduzi-las. Implica compreender que a imparcialidade só se alcança verdadeiramente quando há consciência crítica das assimetrias que atravessam a vida das pessoas que recorrem à Justiça.

Sem transformar a estrutura interna do Judiciário — nas suas composições, formações, critérios de promoção e representação —, protocolos seguirão correndo o risco de se tornarem meras formalidades, distantes da efetividade necessária. Julgar com perspectiva de gênero e raça é um compromisso ético com a democratização da Justiça e com a construção de uma sociedade mais igualitária.

A canção Zé Ninguém, do Biquini Cavadão, ecoa com precisão o sentimento de quem vive sob a sombra desse sistema de Justiça desigual. Quando a música pergunta “Quem foi que disse que a justiça tarda mas não falha?”, denuncia a distância brutal entre as promessas da lei e a realidade de exclusão vivida por tantos brasileiros. O “Zé Ninguém” é a representação do povo que, no cotidiano, sente que “aqui embaixo as leis são diferentes” — percepção trágica, mas fiel, do funcionamento seletivo do Direito, que garante prerrogativas para uns e precariedade para outros.

Assim como o personagem da canção, que “leva um tiro que sai pela culatra” a cada novo dia, os corpos racializados, femininos e periféricos enfrentam uma Justiça que não os reconhece plenamente como sujeitos de direitos. “Eu não sou ministro, eu não sou magnata”, canta o Zé Ninguém, escancarando que, no Brasil, o acesso a uma Justiça efetiva ainda é privilégio, não um direito universal. Integrar a perspectiva de gênero e raça ao Judiciário é, portanto, mais do que uma adequação normativa: é uma ruptura necessária com a lógica que naturaliza a exclusão de milhões de “Zés Ninguéns” da proteção e da dignidade prometidas pela Constituição.

A expressão “aqui embaixo as leis são diferentes”, presente na canção, sintetiza de forma crua a experiência de quem vive à margem do acesso real à Justiça no Brasil. Enquanto o discurso jurídico oficial proclama a igualdade perante a lei, na prática cotidiana a seletividade e a hierarquização de direitos se impõem como regra. “Aqui embaixo” — nas periferias, nas comunidades negras, nos corpos femininos e racializados —, o rigor da lei é outro: mais punitivo, mais indiferente, menos protetivo. A Justiça, que deveria ser o escudo dos vulneráveis, muitas vezes atua como instrumento de reprodução das mesmas exclusões que deveria combater.

Esse abismo entre o ideal e o real torna urgente não apenas a aplicação formal de protocolos de julgamento com perspectiva de gênero e raça, mas a transformação estrutural do sistema, que insiste em tratar cidadãos de maneira desigual sob a fachada da neutralidade.

Aqui embaixo as leis são diferentes — e, enquanto os debaixo não subirem, não haverá Justiça. A democratização da estrutura do Judiciário, a ampliação da representatividade e a transformação crítica da formação jurídica não são apenas caminhos possíveis: são imperativos para que a Justiça deixe de ser privilégio de poucos e se torne, enfim, direito efetivo para todos.

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Last Update: 29/04/2025