O Ira! se preparava para começar os ensaios da longa turnê que fará, a partir do fim de abril, em comemoração ao maior êxito comercial da banda, o álbum Acústico MTV (2004), quando os fãs foram surpreendidos com um comunicado da produtora 3LM Entretenimento que anunciava a suspensão dos shows em quatro cidades: Jaraguá do Sul (SC), Blumenau (SC), Pelotas (RS) e Caxias do Sul (RS).

A empresa informava ter recebido “inúmeros pedidos de cancelamento de ingressos adquiridos” e “desistência de patrocinadores”. Por trás da atitude, estava a insatisfação com o fato de Nasi ter defendido que não sejam anistiados os responsáveis pelos ataques antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, em Brasília.

O vocalista, de 63 anos, manifestou-se sobre a questão em um show da banda na cidade mineira de Contagem, no dia 29 de março. O episódio teve grande repercussão.

Após gritar “Sem anistia!”, o artista foi vaiado por uma pequena parcela do público, e imediatamente reagiu. “Pra vocês que estão vaiando, vou falar uma coisa pra vocês: tem gente que acompanha o Ira!, mas nunca entendeu o Ira! Nunca entendeu o Ira!”, começou, então já sob aplausos.

“Tem gente que acompanha a gente e é reacionário, tem gente que acompanha o Ira! e é bolsonarista. Isso não tem nada a ver, gente! Por favor, vão embora! Vão embora da nossa vida!”, prosseguiu ele. “Vão embora e não apareçam mais em shows, não comprem nossos discos, não apareçam mais. É um pedido que eu faço.”

Antes do cancelamento dos shows, Marcos Valadão Ridolfi, o Nasi, comentou, em entrevista a CartaCapital, que havia o risco, “por conta dos bolsominions”, de “caírem umas três cidades” dentre as mais de 40 que devem receber a turnê. O contra-ataque, que contraria os princípios da liberdade de expressão, se confirmaria seis dias depois.

Quando Nasi diz que parte do público nunca entendeu o Ira!, ele tem razão. Quem conhece a banda não deveria espantar-se com as posições políticas de ­Nasi e do guitarrista Edgard Scandurra, os dois fundadores remanescentes do grupo criado em 1981. Há 40 anos o Ira! defende direitos sociais em numerosas canções.

Núcleo Base, o primeiro sucesso do Ira!, foi composto por Scandurra, um apaixonado pelo punk rock, gênero marcado por rebeldia e críticas ao sistema, que, à altura, prestava o Serviço Militar obrigatório. A canção tinha um refrão explosivo: Eu tentei fugir, não queria me alistar/ Eu quero lutar, mas não com essa farda!

A música faz parte do primeiro álbum da banda, intitulado Mudança de Comportamento (1985). O disco teve outros sucessos, como a faixa-título e Longe de Tudo, compostas a partir de dois outros temas que se repetiriam nas músicas do Ira! ao longo de sua história: as crises existenciais e o amor.

O álbum seguinte, Vivendo e Não Aprendendo (1986), tem os sucessos Envelheço na Cidade, Dias de Luta e Flores em Você. Três outras canções no disco revelam o espírito de contestação e revolta da banda: Nas Ruas, Pobre Paulista e Gritos na Multidão.

A temática de crítica social se firmaria em outros álbuns autorais, sempre tendo Scandurra como principal compositor, em canções como Pegue essa Arma (1988); Clandestino (1990); A Etiópia e Meus Problemas (1991); Arrastão (Ladrão Que Rouba Ladrão) (1993) e Justiça Militar, Justiça Civil (1998).

O primeiro disco de inéditas após o período de seis anos em que Nasi e ­Scandurra tiveram um rompimento – entre 2007 e 2014 – mostrava que o Ira! mantinha-se alinhado ao seu propósito inicial.

A música Mulheres à Frente da Tropa, cujo videoclipe foi gravado numa ocupação de sem-teto, é a expressão maior do álbum Ira (2020), que explicitava o descontentamento da banda com os rumos do País.

“Tem gente que acompanha a gente e é bolsonarista. Por favor, vão embora!”, disse Nasi, no palco

À época, Scandurra disse que eles estavam “do lado da coragem de enfrentar o momento obscuro”, marcado pela chegada ao poder de gente que queria “levar o País para a extrema-direita”, algo que “não combina com a arte, com a música, com o rock”.

Hoje, Nasi avalia esse álbum como tendo sido um dos mais elogiados da discografia da banda: “Foi desafiador, porque a gente não fazia disco de inéditas há 12 anos”.

O vocalista também acredita que “vai ter muita gente chorando na plateia” nos shows da turnê do álbum acústico. “Isso é um patrimônio imaterial que o artista tem: suas músicas fazerem parte de momentos importantes na vida de cada um.”

O Ira! Acústico estourou com as músicas O Girassol e Eu Quero Sempre Mais, que tinham sido lançadas originalmente em 1995 no disco intitulado 7. “Foram músicas que ficaram escondidas”, recorda Nasi.

O repertório desse álbum inclui antigos sucessos e três canções inéditas. Entre as gravadas pela primeira vez pelo grupo, uma delas, Flerte Total – lançada inicialmente num disco solo de ­Scandurra – chamava atenção, na época do lançamento, pelo discurso direto sobre as drogas, algo raro em bandas já no estrelato: Muita gente já ultrapassou/ A linha entre o prazer e a dependência.

Nasi, a despeito da fama, segue a se ver como um artista que anda à margem das tendências de mercado. Na carreira solo, que conduz de forma paralela desde 1993, Nasi lança ainda este mês o disco ao vivo Solo Ma Non Tropo, seu nono álbum individual.

“Hoje, a gente não ganha mais dinheiro (com disco), mas isso não é um problema para mim. Me divirto gravando disco”, diz.

Nasi é um artista que, assim como seu companheiro, Edgard Scandurra, expressa suas opiniões. O recente cancelamento de quatro shows no País só reforça a imagem do Ira! como uma banda convicta de seu ideário. •

Publicado na edição n° 1358 de CartaCapital, em 23 de abril de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Sem anisitia e sem farda’

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Last Update: 16/04/2025