no Substack: Amanhã não existe ainda

Segurança jurídica para quem?

por Luis Felipe Miguel

Os servidores técnico-administrativos da Universidade de Brasília estão em greve. O motivo: o Ministério da Gestão não quer pagar a URP, um percentual de reajuste nos salários que vigora há três décadas e meia.

A história é a seguinte. Depois do fracasso do Plano Cruzado, o governo Sarney criou a Unidade de Referência de Preços (URP). A URP estabelecia o índice que deveria reajustar “preços e salários” a cada três meses, mas, na prática, os preços subiam todos os dias. Os salários é que amargavam três meses de perdas antes de chegar a compensação. Em suma, a URP funcionava como um mecanismo de correção salarial automática, independente de negociação coletiva, reajustando os vencimentos dos trabalhadores para repor as perdas em situação de elevada inflação.

Em novembro de 1989, porém, o novo ministro da Fazenda, Maílson da Nóbrega, baixou um plano econômico que congelava preços e salários, Na prática, uma vez mais, os preços continuavam livres e os assalariados é que pagavam o pato. O Plano Verão (apelidado de “Plano Ladrão” por sindicatos de todo o país) cancelou a aplicação da URP do trimestre, que alcançava 26,05% – esta perda seria assumida pelos trabalhadores.

Vários trabalhadores e sindicatos entraram na justiça contra o arrocho. Na UnB, em 1991, o então reitor Antonio Ibañez Ruiz estendeu a concessão da URP a todos os funcionários, tanto técnico-administrativos quanto professores, por meio de ato administrativo, fundado no princípio da autonomia universitária.

No entanto, a União insiste em derrubar o pagamento da URP. Embora o caso já tenha “transitado em julgado” muitas vezes, sempre há uma nova manobra jurídica para reabri-lo. Por uma dessas formalidades, os casos relativos aos técnico-administrativos e aos professores correm em paralelo.

Em maio de 2023, Gilmar Mendes determinou o fim do pagamento da URP para os técnicos. O engraçado é que, dias antes, ele tinha determinado a volta do pagamento da aposentadoria integral e vitalícia para os ex-governadores do Paraná.

Seu voto dizia que não era correto eliminar vantagem pecuniária de quem a recebia há muitos anos, de boa fé, e contava com ela na organização de sua vida.

Coisa de mais de R$ 30 mil mensais. Para ex-governadores, em geral gente de posses.

Para os servidores técnico-administrativos, que compõem uma das categorias mais mal remuneradas do funcionalismo federal, Gilmar não olhou com essa compreensão. A URP nem é mais de 26,05%, já que deixou de ser reajustada por uma série de manobras. Mas, para muita gente, as centenas de reais da URP fazem toda a diferença. A diferença, para citar um único caso real, entre ter ou não a condição de pagar as despesas médicas de uma mãe idosa.

Com a pressão, Gilmar mudou de posição e a URP foi mantida. Mas daí Esther Dweck teve uma nova ideia: pagar a URP, mas abatê-la dos reajustes que viessem a surgir.

Em suma, está congelando os salários dos servidores técnico-administrativos da UnB, que ficarão amargando as perdas inflacionárias até que a URP tenha sido anulada.

Gilmar, sempre ele, aceitou a interpretação estapafúrdia e deu voto favorável, na qualidade de relator, embora contrarie frontalmente a decisão colegiada anterior.

Estamos falando, nunca é demais repetir, de algo que é recebido há três décadas e meia – não são três meses e meio, nem mesmo três anos e meio. E que, durante este tempo todo, foi repetidas vezes referendado por decisões judiciais.

Eu me pergunto qual o custo em termos de saúde mental, de estresse, mesmo de produtividade no trabalho, quando se mantêm milhares de servidores em suspense permanente, ameaçados de redução salarial, sem saber se vão conseguir pagar as contas no mês seguinte.

figura de calendário chinês da dinastia Tang (fim do século VII ou começo do século VIII)

Os liberais gostam de encher a boca para falar da “segurança jurídica” como algo essencial. É necessário garantir o respeito aos contratos já estabelecidos – esta seria, na verdade, a obrigação nº 1 dos Estados. Caso contrário, os investidores temem ser prejudicados, se sentem receosos.

Este argumento é sempre usado para combater, por exemplo, mudanças legislativas que ampliem os direitos dos trabalhadores ou dos consumidores, a proteção ambiental ou a taxação sobre os lucros. Em qualquer um desses casos, acendem-se alertas de uma insegurança jurídica que prejudicaria o ambiente de negócios.

Mas para a classe trabalhadora, nada disso existe. E a insegurança, para o trabalhador, não é só financeira: é existencial.

Comemoramos a indicação de Esther Dweck para o ministério, uma pessoa com trajetória de compromisso com o serviço público. Estávamos saindo do governo Bolsonaro, em que a existência do funcionalismo profissional se mostrou essencial para que o país não degringolasse de vez. Mas foi em vão que esperamos algum tipo de valorização.

A truculência verbal de Paulo Guedes era singular. Mas parece que a vontade de “colocar uma granada no bolso” do funcionalismo é bem difundida.

O funcionário da UnB planejou sua vida contando com um determinado salário. Pode ter (e falo por experiência própria) recusado outras possibilidades de emprego levando em conta a remuneração que recebia e também cenários de mais longo prazo: vantagens periódicas (como licenças), tempo para a aposentadoria, quanto passaria a receber depois de se aposentar.

Desde que entrei na UnB, lá se vão quase 30 anos (a URP já fazia parte do salário!), só perdemos direitos e vantagens. Os acréscimos salariais por tempo de serviço (anuênios, biênios ou quinquênios) foram abolidos. A licença sabática e a licença prêmio foram abolidas. Vou ter que trabalhar muitos anos a mais até me aposentar e mais ainda se quiser garantir uma aposentadoria integral.

Não sou só eu ou somos só os funcionários públicos. Cada vez que alguém grita “déficit fiscal!”, é batata: lá vem pancada nos trabalhadores e aposentados.

O “rombo da Previdência” é sempre invocado. O primeiro alvo é desatrelar o benefício do salário-mínimo. Outro dia um imbecil, colunista da Folha, classificou os aposentados como espertalhões: ganham “aumento sem fazer nada”.

É algo não apenas desumano como burro. O vencimento dos aposentados é o motor da economia em muitos municípios brasileiros. Achatá-lo significa deprimir o mercado interno, quebrar comércios, reduzir empregos – além, é claro, do detalhe que é jogar milhões de pessoas na mais absoluta carência.

A reforma da Previdência é um tema permanente da agenda política brasileira. Nunca na intenção de tornar o sistema mais justo ou melhorar a situação dos pensionistas. E os contratos em vigor com trabalhadores que planejam se aposentar um dia? Ninguém liga para eles.

O objetivo é sempre obrigar o trabalhador a contribuir com uma parcela maior do seu salário, se aposentar mais tarde e receber um benefício mais minguado.

Nunca se pensa em apertar o cerco sobre a sonegação, ampliar a formalização do trabalho, taxar os ricos. Sempre é ferro na classe trabalhadora.

Sem falar que as contas do tal rombo são contestadas por muitos economistas sérios. No debate público, porém, qualquer dúvida é interditada e o déficit da previdência tem que ser tratado como dogma.

Lula, no primeiro mandato, bombardeou o regime previdenciário dos servidores públicos. O discurso já era o de sempre: direitos não devem ser estendidos para quem não usufrui deles, mas rotulados como “privilégios” e extintos.

Com Bolsonaro, aprovou-se (e aprofundou-se) a reforma desenhada por Temer, que exige mais tempo de contribuição e idade mais avançada para que o trabalhador se aposente.

A precarização do trabalho serve para o enquadramento da aposentadoria como privilégio. O autônomo, o empregado não formalizado dos aplicativos, o informal, sempre levados a verem a si mesmos como “empreendedores”, aceitam que nunca desfrutarão desse direito e canalizam sua frustração para os empregados com carteira assinada.

A previdência, cumpre lembrar, é um instrumento de justiça social, antes de ser um problema contábil.

Para o capital, a aposentadoria é o descarte de uma mão de obra inservível. Se ainda tem condições de produzir, quanto mais de se divertir, deve estar a serviço do capital, seja trabalhando, seja no exército de reserva. Só quando perde essas condições tem direito ao “descanso” – já que os preconceitos do nosso tempo impedem soluções mais econômicas e elegantes, tipo praticar eutanásia compulsória em todo mundo. Mas que seja pelo menor tempo e pelo menor custo possíveis.

Mas, para o trabalhador, a aposentadoria é uma espécie de alforria. É o momento em que ele pode alcançar um pouco da liberdade existencial de que o burguês desfruta, perseguindo seus próprios projetos de vida. Para isso, é preciso que tenha duas coisas: alguma tranquilidade material e suficiente saúde.

Empurrar a aposentadoria para a velhice avançada, em que o trabalhador já está com um pé na decrepitude, ou negar um rendimento que seja capaz de sustentá-lo são maneiras de negar essa possibilidade.

Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular).

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 21/05/2025