A política externa norte-americana passou a ser tocada pela lógica empresarial. Da Ucrânia à Faixa de Gaza, a pergunta que Donald Trump parece fazer a si mesmo e a seus assessores é: “Que lucro podemos auferir?” Se a resposta é nenhum, então passa-se o ponto.

Cada foco de tensão internacional é encarado por ele como uma lojinha. A primeira a ser auditada pelo novo gerente foi a filial dos interesses na Faixa de Gaza, onde Trump puxou o balancete de 77 anos de conflitos armados acumulados desde a criação do Estado de Israel, em 1948, e concluiu que o melhor a fazer é remover os palestinos e transformar a terra deles numa espécie de Balneário ­Camboriú. A proposta esdrúxula não foi pensada por um estadista, mas por um demolidor e empreiteiro. “Nós apenas limpamos a coisa toda e dizemos: ‘Sabe como é, acabou’”, disse o republicano a um grupo de repórteres que viajavam com ele a bordo do avião presidencial em 25 de janeiro.

A remoção forçada da população civil de um local em conflito é um crime de guerra previsto nas Convenções de Genebra, mas, na lógica empresarial de Trump, basta “construir habitações em uma localidade diferente”. A ideia calça à perfeição na definição de genocídio, “atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”, mas Trump não liga para isso. Ele está interessado em fazer de Gaza o que chama de “Riviera do Oriente Médio”.

O ridículo da situação foi bem resumido pelo presidente da França, Emmanuel Macron, em entrevista à rede de tevê CNN em 11 de fevereiro: “A resposta certa não é uma operação imobiliária, esta é uma operação política”. Acontece que, para Trump, os dois canais se misturam. Tanto assim que, 15 dias depois da declaração de Macron, o presidente norte-americano publicou nas redes sociais um vídeo gerado por inteligência artificial, no qual ­Gaza aparece transformada na Riviera imaginada por ele. Nela, há todas as evidências de uma invasão, ocupação e anexação consumadas, com uma estátua de ouro de Trump no meio da rua, Elon Musk fazendo crianças palestinas correrem atrás de notas de dinheiro lançadas ao ar e duas cadeiras de praia, nas quais Trump e o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, brindam e tomam sol.

Nessa lógica, qualquer crise que se torne superavitária para os EUA está solucionada. O problema identificado não é o genocídio, a luta de um povo contra uma ocupação estrangeira, a demanda legítima pela criação de um Estado palestino, nada disso. Para Trump, se a terra em disputa render bons contratos, então o problema está resolvido.

A segunda filial auditada por Trump foi a da Ucrânia. O problema identificado ali, ao menos aos olhos dos aliados europeus, é que a Rússia invadiu e anexou porções de um território alheio. Para o presidente dos EUA, a questão é, porém, outra. A Ucrânia tem dado prejuízo, e precisa passar a dar lucro. A fórmula encontrada foi semelhante àquela de Gaza: tornar o conflito superavitário para os Estados Unidos, ainda que isso signifique ignorar completamente a própria razão do conflito em si.

Desde o início da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, o Congresso norte-americano aprovou cinco pacotes de apoio militar a seus aliados europeus, no valor total de 175 bilhões de dólares. Trump quer pegar esse dinheiro de volta com a aplicação de taxa de juros digna da máfia. O acordo comercial proposto ao presidente da Ucrânia, Volodymyr ­Zelensky, prevê que os EUA recebam concessões de exploração de minerais estratégicos, petróleo, gás e infraestrutura portuária num valor estimado em 500 bilhões de dólares, de acordo com documento obtido pelo jornal britânico The ­Telegraph e publicado em 17 de fevereiro. Na terça-feira 4, ­Zelensky se disse pronto a assinar o acordo.

Nunca a junção entre política e interesses privados foi exposta de maneira tão direta e rude

O valor representaria um fardo mais pesado para o PIB da Ucrânia de hoje do que aquele imposto aos alemães pelo Tratado de Versalhes, no fim da Primeira Guerra Mundial, com a diferença de que os alemães eram inimigos, enquanto os ucranianos são, supostamente, aliados.

Quando Zelensky foi recebido no Salão Oval da Casa Branca em 28 de fevereiro, por Trump e pelo vice-presidente, JD Vance, a proposta era conhecida. A cena serviu apenas para humilhar o interlocutor e empurrar a ideia goela abaixo da Ucrânia, mostrando ao contribuinte dos EUA que seu presidente está empenhado em fechar um bom negócio, ainda que isso implique abandonar os antigos aliados. A jogada comercial com os ucranianos teve como precedente a decisão norte-americana de também forçar os parceiros da Otan a assumir uma parcela maior dos gastos militares da aliança. Pelo combinado original, todos os integrantes do tratado investiriam o equivalente a 2% do PIB em defesa. Até 2014, só três dos 32 participantes cumpriam com esse compromisso. Em 2024, esse número passou a 23.

Ao abandonar a Ucrânia, aproximar-se da Rússia e criticar a Otan, Trump fez com que a Europa passasse a considerar em xeque a aliança transatlântica fundada contra o nazifascismo na Segunda Guerra Mundial. Do ponto de vista político, o movimento é desastroso. Mas, economicamente, a conta parece fechar. E isso tem sido o bastante para o novo gerente da Casa Branca.

A mistura entre Estado e empresa é reforçada pelo papel proeminente de Musk no governo. Cabe a ele promover os cortes de gastos públicos que estão destruindo, entre outros, programas de combate ao ebola na África, vitais para reduzir os riscos de uma nova pandemia. Além disso, Musk é dono do X (antigo Twitter) e, nessa condição, comprou uma briga política com Alexandre de Moraes por causa das medidas restritivas tomadas pelo ministro do Supremo Tribunal Federal contra militantes de extrema-direita ligados à tentativa de golpe de Estado no Brasil. Só que Musk foi nomeado chefe de um novo departamento chamado Doge, da sigla em inglês para Departamento de Eficiência Governamental. Na primeira reunião de gabinete, o empresário ostentava uma camiseta na qual se lia: “Suporte técnico”. A piada sugere que o magnata é apenas um burocrata a serviço da eficiência da máquina pública, mas essa versão cai por terra quando os advogados de redes sociais que enfrentam disputas judiciais com o Supremo no Brasil declaram que o impasse comercial será em algum momento objeto de resposta da Casa Branca.

Em Gaza, na Ucrânia ou no Brasil, prevalece a diplomacia que tem como método as práticas empresariais e, como objetivo, a obtenção de bons contratos. Não que os interesses privados nunca tenham se mesclado antes com a política. É que nunca aconteceu de forma tão rude, radical e evidente quanto agora. •

Publicado na edição n° 1352 de CartaCapital, em 12 de março de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘São só negócios’

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Last Update: 06/03/2025