Há crianças chorando em Gaza?

Tenho respostas furiosas para a pergunta da minha filha: “por que Israel está fazendo isso?”

Por Salem Nasser, em Cegueira Seletiva

Meus filhos são, de modo geral, mais generosos do que eu. São mais atentos à pobreza que dorme nas ruas; são mais atenciosos com os pedintes; são mais dispostos a uma conversa de igual para igual com as crianças que nos pedem dinheiro e a quem oferecem espontaneamente um sorvete.

É como se alguém lhes tivesse sussurrado ao ouvido os versículos do Alcorão, que eles não conhecem, em que o Arcanjo diz ao Profeta:

Ele não te encontrou um órfão e não te deu abrigo?
Não te encontrou perdido e não te guiou?
Não te encontrou necessitado e não satisfez suas necessidades?…
Então não oprima o órfão!
E não repila o necessitado!

Não sou religioso, mas digo graças a Deus por isso. Não é mérito meu. É um presente do universo, do destino…

Minha filha de 7 anos, que leva o nome da bisavó muçulmana fiel, nome que é também o da mãe do Cristo, senta no meu colo e me pergunta: “será que tem alguma criança chorando agora na Palestina?”

Minha mente viaja imediatamente para Gaza e, pelo tempo que não dura um instante, imagino que horas seriam por lá e se haveria alguma possibilidade de não haver qualquer criança chorando…

Não quero pensar muito nas crianças de Gaza, que choram de fome, choram por verem seus pais e irmãos baleados na fila do desespero pela comida, que choram a sua orfandade, que choram as suas casas destruídas, que choram o abandono que o mundo lhes reserva…

Não quero pensar porque preciso achar, rapidamente, uma resposta que seja apropriada para quem me pergunta, uma criança de 7 anos.

Qual é a resposta que a educa melhor, que a preserva de um sofrimento grande demais para a sua idade (ainda que as crianças sobre quem pergunta sejam tantas vezes tão mais jovens e sofram tanto mais do que é indizível), e alimente ainda o seu instinto solidário?

Como um raio, passa-me pela cabeça a imagem de Ivan Karamázov rebelando-se contra a ideia mesma de Deus porque não aceita que o suplício de uma única criança, que ainda não carrega qualquer pecado! possa fazer parte de algum plano divino. (Sim, você que tem boa memória e que já me leu com alguma frequência sabe como aprecio o gênio de Dostoiévski e o quanto leio de essencial na pergunta que faz Ivan, em Os Irmãos Karamázov).

Respondo, sem mentir, mas talvez sem responder de verdade. Digo: “a qualquer momento, sempre haverá crianças chorando em algum lugar do Mundo.”

Ela continua, sem prestar muita atenção ao que há de abstrato e genérico na minha resposta: “eu sinto muita dó das pessoas da Palestina.” Respondo que eu também sinto. Ela pergunta: “por que Israel está fazendo isso?”

Eu sei que em poucos instantes, como qualquer criança normal e saudável, a sua atenção vai se voltar para algo mais pessoal, mais egoísta, talvez peça para usar meu celular. E dou graças a Deus também por isso, apesar de não ser religioso, insisto.

Em mim, no entanto, um pouco como o fígado de Prometeu, uma ferida interna que descansava um pouco e tentava se regenerar abriu-se inteira quando cutucada pela minha filha. O fel que ela continha se espalha pelo meu ser.

Tenho respostas furiosas para “por que Israel está fazendo isso?” e também para “como, e por quê, o Mundo permite que Israel faça o que está fazendo?”

Mas não é tempo ainda, não para ela.

Digo apenas: “há muita crueldade no Mundo, baba.

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Last Update: 28/07/2025