Entre a Desolação e a Estatística
A desolação de cada morte singular parece, portanto, depender, para ser registrada e notada, de ser contada, dramatizada
Por [nome do autor], em [nome do site]
Ontem um avião caiu no Brasil. Todos a bordo morreram.
No jornal de hoje, li sobre alguns dos passageiros e da tripulação que pereceram.
Emocionei-me com todas aquelas histórias de vida interrompidas tão subitamente, todos aqueles futuros que já não acontecerão.
Fiquei especialmente tocado com a história de uma menina de 3 anos que viajava com o pai e que morreu ao seu lado apenas dois dias antes do dia dos pais.
E logo por aquela de um casal que morreu deixando para trás dois filhos pequenos, agora órfãos.
Tentei honrar essas pessoas e as demais vítimas em meus pensamentos e esperei que seus amados que ficam em vida tenham coragem e força enquanto enfrentam o sofrimento e a perda.
Então, inevitavelmente, minha mente viajou em direção às milhares de crianças que têm morrido na Palestina durante os últimos dez meses, e que têm perdido seus pais, que têm vivido com um medo indescritível, até o momento em que morrem, que têm corrido de um lugar para outro tentando se salvar, que têm passado fome, ficado doentes…
Ainda esta manhã, antes de ler sobre as mortes trágicas que se deram no Brasil, fiquei sabendo que, há poucas horas, enquanto se reuniam para a reza da manhã, mulheres e crianças palestinas deslocadas, que vinham mudando de um pretenso “lugar seguro” para outro, foram bombardeados pelo exército israelense.
Mais de cem morreram. Eu logo vi os pequenos corpos ensanguentados espalhados pelo chão.
Lembro com frequência de uma frase atribuída a Stalin: “a morte de uma pessoa é uma desolação; a morte de milhões é estatística”.
Sempre pensei que há muito de verdadeiro na frase, apesar da tristeza que carrega. Estou muito cansado agora para tentar entender e explicar por que é tão verdadeira.
Mas eu frequentemente combino essa ideia com o conto de Tolstoi “Três Mortes”.
Lemos ali sobre as diferenças entre a morte de uma senhora da aristocracia, cercada de drama, choro, rituais, agito e pessoas, e o fim de um cocheiro que, ainda que bem quisto, ninguém tem, à noite, no frio, em busca do pouco descanso antes de voltar à labuta, tempo ou disposição para ver morrer ou lamentar.
Apenas nós, por graça de Tolstói, registramos, na ficção, o drama da morte do pobre. E o drama aqui está também em que na realidade do pobre este drama passa sem registro.
A desolação de cada morte singular parece, portanto, depender, para ser registrada e notada, de ser contada, dramatizada. Não se pode fazer isso para cada um dos milhões que viram estatísticas.
Será que podemos fazê-lo para os 40 mil diretamente mortos por Israel?
E para os mais de 100 mil que morreram indiretamente como consequência da guerra?
Sinto que devo a cada uma das crianças que agora têm seus olhos apagados, cada uma que teve a cabeça explodida, que já não tem os membros, que foi enterrada em cova coletiva e que não tem um nome amarrado ao corpo, sinto que devo a cada uma delas saber seus nomes, saber suas histórias e seus sonhos de futuro, saber do seu amor pelos pais e pelos irmãos… sinto dever saber e contar. Mas não posso.
Sinto que devo aos pais sobreviventes, e aos órfãos sobreviventes, ter a capacidade de confortá-los, de encontrar as palavras certas e os gestos que acariciarão suas almas e permitir que encontrem esperança no futuro. Tampouco posso fazer isso.
Sinto que devo a todos eles encontrar as frases certas que farão com que você e o resto da humanidade acordem e vejam a desolação, mas me vejo aquém da tarefa.
Tenho dificuldade em acreditar numa vida após a morte. Se existe tal coisa, espero que todas essas crianças e todos esses pais encontrem ali tamanha benção que os faça esquecer o que aconteceu aqui embaixo.
Ao mesmo tempo, tremo ao pensar em todas aquelas crianças olhando para nós com fúria e frustração, perguntando como foi que pudemos esquecê-las.
E espero, se há uma vida depois da morte, que haja um Deus vingativo que nos pergunte onde estávamos e o que fizemos enquanto acontecia o que vem acontecendo, e que nos fará pagar, cada um de acordo com o seu pecado, mesmo que eu tenha que queimar com os demais.