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Por Leonardo Sakamoto, no UOL
Desde que o papa Francisco passou a luta pela vida no hospital Gemelli, em Roma, devido a um grave quadro respiratório, há uma rosário de autointitulados cristãos torcendo por sua morte nas redes sociais – incluindo requintes de crueldade, nas redes sociais. Provando que a ultrapolarização derreteu os miolos de muita gente, acusam Francisco de ser “comunista” e pedem para que sua vida seja ceifada.
Não vou citar o nome dos santos, apenas trazer trechos dos seus milagres: “Vou festejar muito o dia em que esse papa for para o inferno”, “papa comunista tem que morrer”, “todo sofrimento do mundo é pouco para essa uma desgraça”, “espero que morra agonizando”, nunca foi papa, foi um vagabundo comunista que adora terrorista”, ‘logo este papa comunista vagabundo sem vergonha que cagou no trono de Pedro vai comer capim pela raiz”, “vou rezar para que ele morra logo”.
O comportamento desse naco violento conseguiu juntar políticos e influenciadores da esquerda à extrema direita, que alertam que, independentemente de com se concordar ou não com as posições de Francisco, não é admissível alguém que se intitula cristão e, especificamente, católico, torça pela morte de alguém, ainda mais um líder religioso conhecido por pregar a a solidariedade.
A acusação de “comunista” não é novidade. Ele mesmo tratou do assunto em uma entrevista ao canal C5N, da TV argentina, em 2023: “Padre, você é comunista? Minha carta de identidade é Mateus 25. Leia Mateus 25 e veja se quem escreveu não era comunista. Tive fome e me deste de comer, tive sede e me deste de beber, estive nu e me vestisse. Essa é a regra de conduta”.
Aqui me lembro de uma citação atribuída ao já falecido Hélder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife, que lutou contra a ditadura e esteve sempre ao lado dos mais pobres: “Se falo dos famintos, todos me chamam de cristão, mas se falo das causas da fome, me chamam de comunista”.
Quando o papa Francisco afirmou, em uma entrevista, que Lula havia sido preso de forma injusta, também foi alvo da extrema direita brasileira, que o chamou de comunista. O mesmo grupo também considera o Supremo Tribunal Federal, a Procuradoria-Geral da República e a Polícia Federal comunistas, não é uma alcunha exclusiva.
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Mas uma coisa é tachar o papa é comunista. O indivíduo pode ser de uma corrente ultraconservadora católica ou cristã que bate de frente com a de Francisco em uma série de temas, principalmente no acolhimento aos mais necessitados, independente de origem, gênero e cor de pele. Interessante, contudo, é que o papa “comunista” defende dogmas da igreja, como na questão do direito ao aborto, que ele considera um homicídio e uma violação da dignidade humana.
Outra é desejar e defender a sua morte, o que mostra uma escalada do ódio, uma banalização da violência e a eliminação do outro como instrumento de debate social.
Falta amor no mundo, mas também interpretação de texto
Como já disse aqui, não sou um homem de fé, apesar de ter crescido em um lar católico, feito comunhão e crisma, mas, ao mesmo tempo, ter estudado em escola adventista e lido a Bíblia integralmente. Por isso, sempre penso que seria tão bom se as pessoas entendessem o que está escrito no Evangelho de Mateus, capítulo 25, especificamente do versículo 35 a 40, citado por Francisco:
“Porque tive fome, e destes-me de comer; tive sede, e destes-me de beber; era estrangeiro, e hospedastes-me. Estava nu, e vestistes-me; adoeci, e visitastes-me; estive na prisão, e fostes me ver. Então os justos lhe responderão, dizendo: Senhor, quando te vimos com fome, e te demos de comer? Ou com sede, e te demos de beber? E quando te vimos estrangeiro, e te hospedamos? Ou nu, e te vestimos? E quando te vimos enfermo, ou na prisão, e fomos ver-te? E, respondendo o Rei, lhes dirá: Em verdade vos digo que quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes.”
Diante da ausência de entendimento desse trecho, o Todo-Poderoso deve pensar que falta amor no mundo, mas também interpretação de texto. Se interpretássemos por uma forma mais humana o que significa amar o seu semelhante como a si mesmo e todo o restante, entenderíamos que o ódio ao outro por sua natureza não faz sentido algum.
Para eles, Jesus é só um pingente de ouro ou um bom negócio.
Se Jesus voltasse defendendo a mesma ideia central presente nas escrituras sagradas do cristianismo (e que, por ser tão simples, não é seguida como deveria) e andando ao lado dos mesmos párias com os quais andou, seria humilhado, xingado, surrado, alfinetado e explodido. Ele seria chamado de mendigo e de sem-teto vagabundo, olhada como operário subversivo, alcunhado como agressor da família e dos bons costumes, violentado e estuprado, rechaçado na propaganda eleitoral obrigatória em rádio e TV, difamado nas redes sociais, censurado pela Justiça. Teria seu barraco queimado e toda sua vida transformada em cinzas em uma reintegração de posse ao som das palmas dos ricos. Seria linchado num poste pela população em nome da fé e das tradições, escravizado em uma fazenda, jogado da ponte por policiais. Receberia socos e pontapés dos hoje autointitulados sacerdotes do Templo, supostos representantes dos interesses de Deus na Terra que afirmam lutar pelo direito de expressarem suas crenças, quando querem anular tudo o que pode ameaçar seu controle sobre o povo. E, ao final, alguém ainda tiraria uma selfie ao lado de seu corpo morto para postar no Instagram. Ou faria uma dancinha sobre o cadáver para o TikTok, chamando-o de comunista.
Muitos que gritam “comunismo!” têm nojo do dicionário
Por fim, a palavra “comunismo” retirada de seu sentido original, de propriedade comum dos meios de produção e da ideologia por ela sustentada, se tornou no Brasil um simples comando para o linchamento digital, independentemente de quem esteja do outro lado. O objetivo é tirar a credibilidade e destruir, muitas vezes para servir de exemplo. E, consequentemente, esse processo tornou a palavra depositária do “mal”. E um grande mal é sempre temido e vira uma ameaça.
Muitos que “xingam” pessoas ou instituições de comunistas não compreendem o que isso, de fato, a palavra significa. Caso as pessoas soubessem História e estivessem atentas ao que se passa à sua volta, buscando saber as manifestações do comunismo no Brasil e no redor do mundo, poderiam, inclusive, criticá-lo de forma mais embasada. E, acredite, há muitas críticas a serem feitas.
Mas ouviram de seus “mentores” que comunismo é um tipo de “governo”, formado por “vagabundos que não gostavam de trabalhar”, que ajuda a “perverter sexualmente” as “pessoas de bem” e a “destruir as famílias”, controlado por “bilionários pedófilos” e “atores de Hollywood” que tentam “vacinar os cidadãos com chips 5G” a fim de controlar seus pensamentos. O excesso de aspas não é proposital, apenas triste.
Graças à sabedoria que circula nas redes sociais, descobrimos, que a cantora Madonna, a revista Economist, as Nações Unidas, o jornal New York Times, a Rede Globo, o Facebook (antes de Trump, claro), o cantor Roger Waters, o filósofo e economista conservador Francis Fukuyama, a deputada de extrema direita Marine Le Pen, banqueiros multibilionários e a multinacional Pfizer são comunistas. Além de Leonardo DiCaprio e o papa, claro.
Despido de seu significado, o termo também se tornou um elemento de identificação de grupo. Ou seja, uma postagem chamando a Pfizer ou Tite de comunistas imediatamente passa uma mensagem compreendida pelos demais membros do grupo, gerando conexão. De que aquilo é ruim, de que não deve ser consumido, de que deve ser combatido. E, se possível, morto.
Como já disse aqui, hoje a palavra é “comunismo”. Amanhã, quem sabe, será “democracia”.
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