
Por Leonardo Sakamoto, no Uol
Quando a política usa o Código Penal como chave de negociação, o resultado raramente vem com cheiro de Justiça. A aprovação do chamado PL da Dosimetria na Câmara ontem é um exemplo disso. Vendido como uma correção técnica para os condenados pela tentativa de golpe de Estado visando à pacificação (sic) da sociedade, o projeto funciona como um alargamento da porta da cadeia, não apenas para quem tentou derrubar a democracia, mas para outros condenados. Mesmo aqueles que cometeram crimes com violência ou grave ameaça.
Sim, no intuito de pagar o preço do resgate cobrado pelo senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), que sequestrou a candidatura presidencial ao governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) até que o centrão ajudasse a tirar Jair da cadeia, deputados fizeram um acordão e votaram pela redução de pena que beneficiasse o patriarca.
Previsível, tanto que avisamos por aqui que isso aconteceria. O problema é que os parlamentares do centrão e da direita não abriram a porta da cadeia apenas a golpistas.
Ao reduzir o tempo mínimo de cumprimento de pena em regime fechado antes da progressão para o semiaberto tanto para lideranças quanto para a massa de manobra da intentona golpista, o projeto permite uma saída antecipada a outros bandidos, como traz Raphael Di Cunto e Carolina Linhares, na Folha de S.Paulo de hoje.
Paulinho da Força, relator do projeto, garante que o texto não beneficia outros criminosos além dos golpistas. É fato que ele excluiu alguns tipos penais clássicos, mas, ainda assim, sobrou um cardápio amplo de delitos violentos que passam a ter progressão facilitada: coação de testemunhas, resistência violenta a agentes públicos, incêndio doloso, ataques à organização do trabalho.

Gente que, até ontem, teria de cumprir mais tempo atrás das grades pode ganhar um atalho para fora. Sim, o Brasil pode ficar menos seguro para que o centrão tenha seu candidato à Presidência da República.
Flávio virou o bode na sala: um nome que inviabiliza alianças, assusta a Faria Lima e atrapalha o plano de 2026 do centrão. Para tirá-lo do caminho, é preciso negociar. E o clã Bolsonaro não cobra barato. Mas como a Câmara não está nem aí para a opinião pública (Datafolha aponta que 54% consideram justo que o ex-presidente cumpra a pena de 27 anos e três meses na prisão), fecha acordos teratológicos.
Como uma anistia ampla tende a ser derrubada pelo Supremo, surge a gambiarra legislativa: não se solta formalmente, mas se encurta a pena. Diante do eleitorado que foi às ruas contra a PEC da Blindagem e o PL da Anistia, o abraço aos bandidos de estimação não é vendido como “perdão”, mas “ajuste”. No balcão de Brasília, a democracia paga a conta pelo neologismo.
A Câmara dos Deputados, que grita enlouquecida em nome do endurecimento de penas a criminosos, tentando mostrar a seu eleitorado que quebra e arrebenta em nome da segurança pública, gostosamente ameniza a vida deles quando isso lhe convém.
Política criminal vira moeda de troca da política eleitoral. A lei deixa de servir à sociedade e passa a servir ao cálculo pessoal. Para tentar jogar Flávio pela janela, a Câmara resolveu abrir a porta da cadeia. Depois, alguém finge surpresa quando ela não fechar mais.