Saigon
por Felipe Bueno
É hora de novamente recorrer ao calendário e falar sobre uma das datas definidoras do que seriam os Estados Unidos e sua relação com sua própria consciência daquele ponto da História em diante.
No dia 30 de abril de 1975, a capital do Vietnã do Sul caiu ou foi libertada, dependendo do lado de sua preferência. Era o fim simbólico e de fato de uma longa campanha de destruição de vidas, terras e reputações, uma interminável caminhada na areia movediça da História da qual os Estados Unidos ainda não se recuperaram.
A Guerra do Vietnã remonta aos anos 50. E, ainda que Richard Nixon, o presidente do caso Watergate, tenha assinado a saída formal da guerra dois anos antes de Saigon, nos chamados Acordos de Paz de Paris, o conflito continuou por mais tempo entre Norte e Sul, ou seja, entre duas visões de mundo, uma das quais apoiada e patrocinada pelos americanos. É como dizer que os corpos – literalmente, em muitos casos – foram retirados do Sudeste Asiático, mas as almas permaneceram.
Vejamos, por exemplo, a expressão “veterano do Vietnã”, que tanto pode acompanhar um futuro falcão da política como um indigente abandonado caminhando pelas ruas em busca de cura para suas sequelas físicas, mentais e morais. Os destinos de quem mandou e foi mandado no Vietnã foram muitas vezes diametralmente opostos, dependendo das relações e dos poderes envolvidos, mas foram atribuídas auras indestrutíveis, carregadas até o último suspiro, a milhares de seres humanos cuja existências reais e individuais vimos dramatizadas em filmes, peças, músicas e livros.
Do lado dos invadidos de então, o fim da guerra deu início a um processo de unificação sob a bandeira vermelha que, como sabemos, durou pouco no mundo real e hoje ocupa seu lugar nas páginas da História. Para o bem e para o mal, essa parte específica e, em geral, todo o Sudeste Asiático hoje são peças da engrenagem do sistema-mundo vigente em funcionamento – e se o funcionamento em si é defeituoso ou está precisando de revisão, essa é outra história.
A indústria cultural dos Estados Unidos fabricou praticamente uma memória coletiva universal sobre a Guerra do Vietnã, um dos emblemas do período do século passado que nos acostumamos a chamar ou pelo menos localizar no tempo como Guerra Fria. No entanto, de volta ao ponto destacado alguns parágrafos acima, erramos se nos esquecemos de pensar no que veio antes, na Indochina, na presença ocidental, especificamente europeia, mais especificamente ainda francesa, na injeção de gasolina nas fogueiras do sudeste asiático de décadas antes. E certamente é possível recuar ainda mais no tempo, buscando as raízes e causas do imperialismo, originado essencialmente da visão de mundo messiânica, repleta de verdades absolutas, que nós, ocidentais, teimamos em carregar, ainda hoje, como uma tatuagem permanente feita na adolescência, uma daquelas que ora nos despertam orgulho e lembranças afetivas, ora nos enchem de vergonha e arrependimento.
Felipe Bueno é jornalista desde 1995 com experiência em rádio, TV, jornal, agência de notícias, digital e podcast. Tem graduação em Jornalismo e História, com especializações em Política Contemporânea, Ética na Administração Pública, Introdução ao Orçamento Público, LAI, Marketing Digital, Relações Internacionais e História da Arte.
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