Saídas do desejo autoritário: o delírio poético

por Eliseu Raphael Venturi

O desejo autoritário é um delírio — mas não qualquer delírio: é o delírio da ordem, da pureza, da razão que tudo explica, do controle que tudo prevê. Seu projeto é de totalização: nomear o inominável, administrar o incontrolável, organizar o que escapa. Ele é, antes de tudo, um gesto contra a linguagem — contra sua falha, sua ambiguidade, seu ritmo. O autoritarismo deseja matar o equívoco. E, ao fazer isso, mata também a poesia.

Contra o delírio do controle, há outro delírio possível: o delírio poético. Não como doença, não como fuga, mas como renascimento ético da linguagem. Delirar poeticamente é desobedecer ao imperativo do literal, romper com a gramática do previsível, devolver à palavra sua potência inaugural — aquela que não descreve, mas cria. A poesia, neste ponto, não é adorno. É política. Porque onde o autoritarismo fecha, o poético abre. Onde o autoritário corrige, o poético erra.

Delirar poeticamente não é inventar uma fantasia para escapar da realidade. É torcer a realidade até que ela revele o que nela já era insuportável — mas ainda sem nome. É falar de um lugar em que o simbólico ainda não se organizou, e por isso mesmo, é ético. Pois só há ética quando há aposta — e a poesia é uma aposta: não no saber, mas no surgimento.

Enquanto o desejo autoritário busca anular a contingência, o delírio poético a celebra. É por isso que ele reinaugura: porque onde havia técnica, ele restitui mistério; onde havia cálculo, ele reintroduz incerteza.

O sujeito do delírio autoritário quer significações fixas. Ele pergunta “o que isso quer dizer? ”, como quem exige um manual. O sujeito do delírio poético, ao contrário, não exige — ele escuta. Sabe que o sentido vem depois, se vier. Ele não ocupa o lugar do saber. Ele vacila — e nessa vacilação, permite que o outro exista. A poesia não impõe presença; ela evoca. Não determina identidade; ela convoca multiplicidade. O delírio autoritário afirma o Um. O delírio poético convive com o resto.

Se o autoritarismo é vertical, a poesia é transversal. Ela passa pelos interstícios, pelos ruídos, pelos lapsos. Ela opera não na lei, mas no ritmo. E o ritmo, por definição, escapa à domesticação. Por isso o poder teme os poetas — não porque eles digam algo perigoso, mas porque fazem a linguagem tremer. E quando a linguagem treme, os muros do discurso dominante trincam. O inédito do ético promovido pela poesia não se dá por catequese, mas por fissura. Ele não convence — ele toca.

Há quem diga que delirar é perigoso. Que é preciso manter os pés no chão. Mas quem disse que o chão é seguro? Que a razão é confiável? Que a lucidez, tal como se exige hoje, não seja também uma forma de loucura? O delírio poético, quando ético, não recusa o real — ele o restitui em sua estranheza. Ele o desautomatiza, o desbanaliza, o devolve à sua dimensão de acontecimento. E isso é insuportável para o autoritário, que precisa que o mundo se comporte como um código.

No plano político, o delírio poético é a recusa de ser governado pela literalidade. Ele rompe com os protocolos da argumentação normativa e propõe outra escuta: a escuta do impossível, do ilegível, do que ainda não foi dito. No plano subjetivo, ele permite ao sujeito não apenas interpretar o que vive, mas recriar-se a partir do que o atravessa. E no plano coletivo, ele oferece um idioma comum que não apaga a diferença — mas a canta.

O delírio poético, como saída do desejo autoritário, não é projeto de poder. É gesto. Gesto que nomeia sem fixar, que toca sem capturar, que diz sem dominar. É um não à rigidez, um sim ao tropeço. Um riso que recusa o escárnio, um choro que recusa a vitimização. É estética como ética. É linguagem como ato.

Se o desejo autoritário é, no fundo, a tentativa de eliminar o trauma da linguagem, o delírio poético é o ato de viver com ele. De saber que a palavra nunca diz tudo, mas ainda assim diz. De saber que o mundo não tem centro, mas ainda assim pode ser dito. De saber que somos incompletos, e que nisso reside nossa possibilidade de fazer laço.

Eliseu Raphael Venturi é doutor em direitos humanos e democracia e radicado em Curitiba/PR.

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Last Update: 28/08/2025