Saídas do desejo autoritário: o comum como experiência

por Eliseu Raphael Venturi

O desejo autoritário precisa de identidades fixas para operar. Precisa saber quem é o inimigo, quem é o aliado, quem pertence e quem deve ser expulso do território simbólico. Seu funcionamento depende de fronteiras, categorias e enunciados estabilizadores do mundo.

E quando o comum se confunde com identidade — seja nacional, moral, estética ou ideológica — ele se torna campo fértil para o autoritarismo. A ideia de um “nós” homogêneo, purificado e coeso é a ficção que sustenta tanto o fascismo quanto a tecnocracia.

É contra essa ficção que se ergue uma alternativa ética: o comum como experiência, não como identidade.

O comum como identidade exige adesão, confirmação, pertença. Ele é excludente por natureza. Todo “nós” fundado como substância implica um “eles” a ser combatido, tolerado ou assimilado. Mesmo nos discursos mais bem-intencionados, a ideia de identidade comum escorrega facilmente para o campo da normatividade. Há sempre um traço a ser preenchido, uma régua a ser aplicada, um nome a ser usado. O sujeito, nesse modelo, só pertence se puder ser definido. O que escapa à definição é marginalizado ou folclorizado.

O comum como experiência, ao contrário, não exige adesão, mas presença. Ele se constrói no entre — entre corpos, entre falas, entre falhas. Não é anterior ao encontro; é efeito dele. Não preexiste à linguagem; é tecido por ela. E como toda experiência, o comum é instável, provisório, às vezes difícil de nomear. Mas é justamente aí que reside sua potência: ele não se estrutura por exclusão, mas por contágio simbólico, por convivência entre o que não se resume ao mesmo.

O desejo autoritário não suporta esse tipo de comum. Ele exige formas reconhecíveis, nomes definidos, fronteiras vigiadas. A experiência, com sua imprevisibilidade, com sua ambiguidade, desorganiza o desejo de controle. Quando o comum se dá pela experiência, ele escapa à vigilância do autoritário. Não porque o desafie diretamente, mas porque não se deixa capturar por suas categorias. É um comum que não reivindica soberania, mas abriga o que não se integra.

Há algo de profundamente ético nesse gesto. Porque ao abdicar da identidade como critério de pertença, o comum se torna espaço de hospitalidade ao que não se compreende de imediato. Ele não exige que o outro se explique, se justifique, se adapte. Ele sustenta a alteridade como presença legítima — ainda que incômoda, ainda que dissonante. E isso é insuportável para o desejo autoritário, que vive da ilusão de que a convivência depende de semelhança.

O comum como experiência exige, também, outro tempo. Um tempo mais lento, mais poroso, menos performativo. Ele não se funda em hashtags nem em bandeiras. Ele se constrói em conversas que não chegam a conclusões, em silêncios compartilhados, em gestos pequenos e sem espetáculo. É um comum que não exige visibilidade para existir. Sua força está na discrição de um vínculo que se dá, não porque era esperado, mas porque foi possível.

Na prática, essa ética do comum se traduz em espaços em que o desacordo não é motivo de ruptura, mas oportunidade de elaboração. Em que o conflito não precisa ser eliminado, mas sustentado. Em que o sujeito pode não saber o que pensa, pode mudar de posição, pode hesitar — e ainda assim permanecer no laço. Em que não se exige fidelidade a uma identidade, mas presença na experiência. Em que o sujeito não é reduzido ao que representa, mas reconhecido por estar.

É essa forma de comum que pode operar como saída ao desejo autoritário. Porque ela não disputa o mesmo território, mas desloca a cena. Ela não responde com outro “nós”, mais justo, mais plural, mais iluminado. Ela dissolve a lógica do pertencimento como critério de validade.

E com isso, abre-se uma possibilidade outra: a de um viver-junto que não precise ser fundamentado, justificado ou defendido. Um comum que não se afirma, mas se atravessa.

Eliseu Raphael Venturi é doutor em direito.

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Last Update: 13/09/2025