Pucallpa, Peru | Em uma ensolarada manhã de sábado, o Instituto Superior Pedagógico Bilíngue de Yarinacocha, região de Ucayali, recebeu dezenas de xamãs shipibo-conibo para uma reunião urgente sobre o futuro do turismo espiritual, a defesa dos saberes tradicionais e a proteção da floresta e dos territórios indígenas, cada vez mais ameaçados.

O aroma do mapacho (tabaco medicinal usado nas cerimônias com a ayahuasca), se misturava com o do café da manhã, servido pontualmente: caldo de frango com chapo, uma bebida típica da selva peruana preparada com banana.

Os ícaros, cânticos sagrados entoados pelas mestras onanya xamãs, ressoavam pelo auditório. Esses cânticos, parte essencial das cerimônias de ayahuasca, não têm tradução literal, mas seu significado é profundamente enraizado na espiritualidade shipibo.

Na cosmologia shipibo-conibo, não há distinção entre o ser humano, a natureza e o universo: tudo está conectado como em uma rede infinita. Essa visão de mundo, onde a diversidade e a reciprocidade são centrais, foi definida pelo etnógrafo Stefano Varese como cosmocentrismo. Diferentemente do antropocentrismo euroamericano, argumenta o especialista, os povos indígenas construíram ao longo de milênios cosmologias “baseadas na lógica da diversidade e da reciprocidade, em que não há centro privilegiado, nem singularidade hegemônica.”

O encontro foi promovido pela Asomashk, sigla para Asociación de Onanyabo Médicos Ancestrales –a palavra onanyabo significa ‘xamãs’, no plural. A maior parte do debate aconteceu na língua shipibo – e, em alguns momentos, em espanhol, talvez por consideração a este repórter, o único não-indígena presente.

 

“Há um extrativismo espiritual”

Um dos principais temas do encontro foi a ameaça de extinção das plantas usadas no preparo da ayahuasca devido ao intenso comércio. “As pessoas usam, mas não plantam”, alertou o xamã Walter Ramiro Lopez, presidente da Asomashk.

O problema é agravado pelo interesse de farmacêuticas estrangeiras em transformar a ayahuasca em remédio. No final de 2022, a canadense Filament Health anunciou a criação de um extrato de ayahuasca em cápsulas para testes clínicos. Para López, essas iniciativas, combinadas com o turismo xamânico e o consumo global crescente, colocam uma pressão enorme sobre a flora amazônica. “Há um extrativismo espiritual através da ayahuasca. Se não cuidarmos dela, simplesmente vamos deixar que outros explorem e obtenham vantagem.”

“Na cosmologia shipibo-conibo não há distinção entre o ser humano, a natureza e o universo. Tudo está conectado”

Há um vínculo importante entre diversidade biocultural e conservação. As plantas usadas no preparo da ayahuasca (o cipó Banisteriopsis caapi e as folhas do arbusto Psychotria viridis) são apenas algumas das centenas que o povo indígena valoriza, utiliza e cuida. Estima-se que existam mais de 400 espécies de plantas na região de Ucayali, muitas delas usadas por comunidades indígenas para alimentos e medicamentos tradicionais.

Além disso, estudos recentes sugerem que cipós, como os usados na ayahuasca, são essenciais para a regeneração florestal, a diversidade de espécies e os processos ecológicos na floresta amazônica, especialmente nos trópicos. Diferentemente de outras regiões – como no Brasil, onde sessões de ayahuasca costumam durar algumas poucas horas – o Peru é conhecido por trabalhos mais profundos e longos. Centenas de centros na selva amazônica peruana oferecem retiros com a bebida psicodélica, em períodos que variam de 15 a 30 dias, ou até mais.

Entretanto, o manejo nem sempre é sustentável. Na comunidade Shipibo San Francisco, um vilarejo nativo com muitos centros de ayahuasca em Pucallpa, não há práticas de reflorestamento coletivo. “Cada mestre planta o que usa”, diz López. Curandeiros ouvidos pela reportagem concordam que falta um trabalho comunitário para a conservação dessas plantas.

Xamãs, os cientistas empíricos

A Asomashk foi criada em agosto de 2018, cerca de três meses após a trágica morte de Olivia Arévalo, líder shipibo assassinada aos 81 anos por um turista canadense, morto em seguida por moradores da comunidade. Sob pressão do governo canadense para resolver o caso, a comunidade se tornou alvo de operações policiais. Lideranças começaram a ser perseguidas, levantando suspeitas de que o caso estava sendo usado para desencorajar a luta dos indígenas por seus direitos e pela preservação de seus territórios.

Buscando soluções para os problemas nos territórios e os efeitos do crescente interesse internacional pela ayahuasca e pelo turismo psicodélico amazônico, os xamãs decidiram se unir. Atualmente, a associação conta com 152 sócios, todos mestres e mestras da região de Ucayali.

“Estamos dando prioridade aos curandeiros shipibos daqui, mas nosso povo está disperso”. Segundo López, muitos migram para locais mais acessíveis aos turistas ou para trabalhar em centros administrados por estrangeiros, deixando suas comunidades.

“Resorts de ayahuasca estrangeiros cobram até 15 mil dólares por retiros de 15 dias”

O processo de iniciação de um xamã envolve longos períodos de aprendizado, que podem durar anos. Trata-se de uma imersão solitária na selva, acompanhada apenas por um xamã mais velho que administra a ingestão ritualizada das chamadas “plantas mestras”, com severa restrição alimentar e sexual e regras muito rigorosas. O objetivo é estabelecer uma conexão entre o xamã e os espíritos das plantas, além de eliminar as substâncias que bloqueiam a sensibilidade, permitindo-lhe, finalmente, encontrar seu “mestre interior”.

Para enfrentar esse problema, a associação iniciou um processo de cadastramento para identificar quantos centros de ayahuasca existem e quais realmente pertencem aos shipibos. A ideia é regulamentar o uso da medicina tradicional shipibo e a forma como centros estrangeiros utilizam o trabalho dos xamãs. “Há muita exploração” ressalta. “O salário que pagam a um mestre é muito baixo comparado ao trabalho que ele faz.”

A reportagem apurou que há resorts de ayahuasca, de propriedade de estrangeiros, que cobram até 15 mil dólares, cerca de 80 mil reais, por retiros de 15 dias. Os curandeiros locais, por sua vez, recebem em torno de 100 soles peruanos por paciente, o equivalente a 150 reais.

Vigilância comunitária

A ausência de uma liderança espiritual também torna as terras indígenas e a floresta mais vulneráveis a invasões, à criminalidade e ao desmatamento. De acordo com dados do Maap (Projeto de Monitoramento da Amazônia Andina), Ucayali é uma das regiões com as maiores taxas de desmatamento na Amazônia peruana, ocupando o segundo lugar em 2020. Em apenas uma das comunidades indígenas da região, a Flor de Ucayali, mais de 20 mil hectares foram desmatados na última década, destruindo cerca de 15% da floresta.

Em 2021, a situação se agravou com a conclusão dos últimos trechos de uma rodovia – as novas estradas são uma das principais causas do desmatamento da Amazônia, pois facilitam o acesso a áreas anteriormente remotas e intocadas.

“Sem ajuda do do Estado, os shipibo criaram uma guarda indígena para proteger suas terras”

Outra ameaça crescente vem do grupo cristão protestante menonita, formado por colonos europeus dedicados à agricultura. Dados da Associação para a Conservação Amazônica revelam que cinco colônias na região de Ucayali desmataram 2.426 hectares entre janeiro de 2022 e agosto de 2023.

A Aidesep (Associação Interétnica de Desenvolvimento da Selva Peruana) denuncia ainda as ameaças de organizações criminosas envolvidas no tráfico de drogas, extração de madeira e pesca ilegal. Além disso, atividades de empresas de óleo de palma, mineração e petróleo estão invadindo terras indígenas e desmatando áreas extensas.

Segundo Julio Cusurichi, dirigente da Aidesep, o governo não toma nenhuma ação, apesar dos inúmeros pedidos de ajuda. “Empresas da indústria madeireira que atuam na região de Ucayali chegaram a denunciar lideranças,” afirma.

Um caso semelhante ocorreu na região de Cajamarca, onde sete defensores ambientais foram acusados sem provas de cometer vários delitos por defender seu território contra a contaminação causada por atividades ilegais de uma mineradora.

Diante da ausência do Estado, o povo shipibo decidiu criar uma guarda indígena para proteger suas terras e recursos. “Quando há algum problema, procuramos a polícia de Pucallpa, mas não somos atendidos; alegam falta de orçamento e de logística para se deslocar”, relata o ativista e comunicador indígena Carlos Rojas. “Então, percebemos a necessidade de criarmos nossa própria proteção.”

Rojas explica que a guarda indígena está visitando e estabelecendo bases em cada comunidade, treinando e capacitando os indígenas com alguns recursos recebidos, como do Shipibo Conibo Center, dos Estados Unidos. O objetivo é que todas as 175 comunidades indígenas tenham suas próprias patrulhas, cobrindo mais de 8 milhões de hectares.

Segundo Rojas, as guardas indígenas já estão presentes em mais de 20 comunidades. Este ano, houve duas grandes assembleias com a participação de povos do alto, médio e baixo Ucayali, interessados em criar suas próprias bases de vigilância. “Só assim poderemos nos proteger das ameaças”.

(Esta reportagem foi realizada com o apoio da Internews/Earth Journalism Network)

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Última Atualização: 12/07/2024