A derrubada, pelo Congresso Nacional, da proposta do governo federal de aumentar o IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) deixou escancarada a força de interesses organizados que operam para impedir qualquer tentativa de justiça tributária no Brasil. A medida, que tinha caráter compensatório diante da ampliação da isenção do Imposto de Renda para a população de baixa renda, foi rechaçada de forma fulminante por parlamentares que, no mesmo dia, aprovaram novos gastos e mantiveram privilégios.
Em entrevista à Rádio Unicamp, a professora Ana Rosa Sarti, do Instituto de Economia da Unicamp, avalia o que se assistiu como uma derrota estratégica do Executivo, mas, sobretudo, um sintoma claro do poder de reação da elite econômica brasileira, inclusive das camadas médias e altas que acessam serviços financeiros sofisticados, operações internacionais e investimentos isentos.
IOF: mais do que arrecadação
O IOF, lembra a economista, não é apenas um imposto arrecadatório, mas também um instrumento regulador da política monetária, com potencial de desestimular operações especulativas ou de consumo externo. A proposta do governo mirava remessas ao exterior, compras em dólar, apostas e aplicações financeiras de maior valor – segmentos que não atingem a população pobre, mas sim as faixas de renda mais privilegiadas.
“Era uma pequena reorganização do sistema tributário, que historicamente penaliza os mais pobres. E mesmo essa mudança marginal encontrou uma resistência brutal”, avalia Sarti. A reação do Congresso foi um gesto emblemático de blindagem de privilégios fiscais e demonstra que, no Brasil, mexer com quem tem renda intermediária para cima continua sendo tabu.
A captura do discurso e o medo da classe média
Parte da hostilidade contra a medida, explica a professora, se deve à captura do discurso político por interesses que distorcem o debate público. “As redes sociais, a mídia tradicional e as lideranças políticas conseguem transformar qualquer proposta progressiva em ameaça à classe média. O impacto real é pequeno, mas a narrativa de ‘governo contra o cidadão de bem’ cola”, aponta.
Esse fenômeno fortalece um Congresso que atua cada vez mais como fiador dos setores com maior poder de barganha, e fragiliza iniciativas que pretendem ampliar justiça fiscal, sem onerar os mais pobres.
A contradição do Congresso: gasta mais, mas não deixa arrecadar
O episódio do IOF também expõe uma contradição estrutural no comportamento do Legislativo brasileiro: ao mesmo tempo em que rejeita medidas para aumentar a receita, amplia as despesas públicas via emendas e privilégios. Casos como o uso de verbas parlamentares para asfaltar ruas de condomínios de luxo — como ocorreu em Alphaville — ilustram esse paradoxo.
“Não se pode falar em responsabilidade fiscal enquanto o Congresso aumenta os gastos sem responsabilidade e impede qualquer alternativa de arrecadação progressiva”, critica Sarti. Para ela, esse tipo de postura empurra o governo a realizar cortes lineares em áreas sensíveis, como saúde, educação e habitação popular, ferindo diretamente a população mais vulnerável.
A conta da sabotagem: cortes à vista e riscos fiscais
Sem alternativas de compensação, o governo será forçado a contingenciar recursos em programas essenciais, como o Minha Casa Minha Vida, segundo a própria economista. “O pano de fundo é o mesmo: um modelo macroeconômico sustentado em juros altos, que exige superávits primários constantes. E quando a arrecadação não fecha, o corte vem”, resume.
Esse cenário de instabilidade entre Executivo e Legislativo — ampliado pela fragilidade da base aliada e pelo calendário pré-eleitoral — agrava os riscos de desequilíbrio fiscal estrutural no médio prazo. Caso a trajetória da dívida pública se deteriore ainda mais, os riscos aumentam.
A armadilha estrutural
Para além da conjuntura, Sarti destaca que essa crise reflete um modelo histórico de política econômica que combina austeridade fiscal, juros altos e manutenção de privilégios tributários. “É preciso olhar o quadro mais amplo: o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, e mantém um sistema tributário regressivo, que pesa sobre os pobres e alivia os mais ricos. Tentar corrigir isso gera conflito, mas é necessário”.
A derrubada do aumento do IOF, portanto, não é apenas um revés pontual. É a prova de que, no Brasil, justiça fiscal ainda é uma luta de muitos contra poucos – e que os poucos continuam vencendo.