Por Nara Lacerda
Do Brasil de Fato
O cruzamento entre as lutas pelos direitos LGBTQIA+, pela terra e contra o racismo sempre deu a tônica da atuação da ativista Ruth Venceremos. Educadora, política e produtora cultural, ela nasceu no sertão pernambucano, em uma família de 14 irmãos, em 1984.
Aos 13 anos, se mudou para um assentamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em Santa Maria da Boa Vista (PE). Ainda adolescente e dentro do movimento, começou a participar de ações educativas e iniciou sua formação na luta popular.
Ruth Venceremos conversou com o programa Bem Viver, após participar da Formação de Defensores e Defensoras LGBTQIA+ em Direitos Humanos e Saúde, na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), em Guararema, São Paulo. O projeto, que aconteceu entre 5 e 9 de agosto, envolveu dezenas de entidades e movimentos.
Ela compartilhou experiências e reflexões sobre o atual cenário da luta LGBTIA+ no Brasil e os principais desafios da causa, com foco especial na intersecção com outras frentes de demandas populares.
“A luta pela liberdade sexual, a luta pelos direitos das pessoas LGBTQIA+ não é antagônica a outras bandeiras. No MST, temos a compreensão de que pessoas LGBTQIA+ sempre estiveram presentes nas nossas lutas. Eu sou prova viva disso. Amar não diverge de lutar. Pelo contrário, essas coisas caminham juntas”, disse, no programa que vai ao ar nesta terça-feira (13).
Em 2018, Ruth participou da fundação do coletivo LGBTQIA+ Sem Terra. Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), ela também é mestre em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Além disso, é diretora do Distrito Drag, coletivo de artistas transformistas de Brasília e Produtora do Bloco das Montadas, maior bloco LGBTQIA+ do Carnaval de Brasília (DF).
Na conversa com o Bem Viver, ela destacou como essa intersecção não apenas fortalece as causas, mas também contribui para uma compreensão mais ampla e inclusiva. Ruth enfatizou a necessidade de combater o preconceito de forma abrangente, uma luta que, segundo ela, deve ser essencialmente popular.
“O inimigo é um sistema que produz pessoas preconceituosas, racistas, LGBTfóbicas. A luta pela superação do preconceito não pode ser diferente, senão ser uma luta popular, travada no seio da população. Nós obviamente temos que pensar estratégias de como contribuir nesse processo de educação das massas e das pessoas.”
A ativista enfatizou ainda a necessidade urgente de uma articulação nacional mais robusta do movimento LGBTQIA+ e a importância crucial da formação contínua de novas lideranças.
Confira a entrevista na íntegra
Qual é a importância de levar à frente a intersecção da luta LGBTQIA+ com os movimentos populares no Brasil?
Foi muito importante e enriquecedor esse processo de formação realizado na escola Florestan Fernandes. A formação é uma dimensão importante para a luta política, sobretudo para pensar a formação de defensores e defensoras LGBTQIA+ na perspectiva dos direitos humanos. Nós entendemos que a luta pela liberdade sexual, a luta pelos direitos das pessoas LGBTQIA+, não é antagônica a outras bandeiras de lutas. Nós que somos do MST temos essa compreensão de que, desde a nossa origem, pessoas LGBTQIA+ sempre estiveram presentes nas nossas lutas. Eu sou prova viva disso, sendo uma das pessoas que ajudaram a construir nosso movimento na minha região.
Amar não diverge de lutar. Pelo contrário, essas coisas caminham juntas. E por isso que nós pensamos em reunir movimentos populares e movimento de luta pela terra para pensar essa parte da dimensão humana, que é a dimensão da nossa sexualidade, do direito ao livre amor. Isso é algo fundamental. Essa é a tendência que começou há mais de uma década, no sentido de que essas pautas, essas lutas, elas se encontram e se potencializam.
Nesse sentido, esse encontro que aconteceu na Escola Nacional Florestan Fernandes é uma síntese da importância dos movimentos populares discutirem cada vez mais as questões que envolvem a luta pela promoção dos direitos das pessoas LGBTQIA+. Primeiro, porque são sujeitos que compõem as trincheiras e as fileiras da luta popular, quer seja a luta por moradia, quer seja a luta pela terra, quer seja a luta por saúde.
Também porque há um esforço do nosso campo de fazer com que o movimento LGBT clássico – da luta tendo a liberdade sexual como um ponto principal – se articule com outras pautas. É um processo de amadurecimento dos movimentos brasileiros.
É possível concluir que o combate ao preconceito não será efetivo sem o componente popular?
Exatamente. Primeiro, nós estamos falando de uma população de um país cuja formação social está ancorada também nas relações patriarcais e racistas. Nós temos até hoje resquícios dessa sociedade que é racista, assim como nós temos resquícios e operamos sob uma lógica de uma sociedade patriarcal. Está no conjunto da sociedade a reprodução dessa perspectiva, atravessada ainda com muito preconceito arraigado, que nós precisamos superar.
O inimigo é um sistema que produz pessoas preconceituosas, racistas, LGBTfóbicas. Tem um componente também de nós pensarmos que a luta pela superação do preconceito não pode ser diferente, senão ser uma luta popular, travada no seio da população. Nós obviamente temos que pensar estratégias de como contribuir nesse processo de educação das massas e das pessoas.
Eu tenho dito que uma das formas de superarmos o preconceito é a convivência com as pessoas. Se pessoas que têm preconceito em relação à orientação sexual e à identidade de gênero não convivem com pessoas LGBTQIA+, elas podem ser as pessoas mais humanistas, com o pensamento mais livre, progressista. Mas, se elas não convivem com essas pessoas, não basta. A superação do preconceito não pode estar apenas na dimensão retórica, ela tem que ser na convivência.
Por isso a importância de termos LGBTQIA+ no conjunto da sociedade, participando, por exemplo, nos movimentos populares. Quantos de nós já não estavam nos movimentos populares, mas, apesar da convivência com as pessoas, muitas ainda nos olhavam de maneira atravessada. O que fizemos foi, no lugar de sair dos movimentos, permanecemos, porque nós entendemos que as nossas organizações querem mudar a sociedade e essa também é a nossa expectativa.
Quais são os grandes desafios da luta LGBTQIA+ hoje no Brasil?
Eu tenho dito que são três dimensões importantes da luta LGBTQIA+. A primeira é a luta pela liberdade sexual, em que nós estarmos falando sobre as pessoas viverem livremente a sua sexualidade. A segunda é a luta por direitos sociais e direitos civis. Aí entram o direito ao casamento civil igualitário, à adoção, à doação de sangue, ao nome social, ao emprego, ao trabalho e outras questões. Por fim, não menos importante na perspectiva do campo que nós estamos construindo, é transformar essa sociedade.
Alguns desafios estão postos hoje para a luta LGBTQIA+. Nós somos um movimento social que é diverso, de diversas formas organizativas e que não tem uma unidade nacional. Portanto, já se coloca como desafio a necessidade de nós termos uma articulação nacional popular do movimento LGBTQIA+, já que nós somos uma importante força política hoje.
Um segundo desafio envolve os processos de formação, a necessidade de formar cada vez mais lideranças LGBTQIA+, a partir de um programa de formação em que tenhamos como horizonte a superação do preconceito, da discriminação, mas também a construção de uma outra humanidade, em que possamos superar não só o preconceito e a discriminação em razão da orientação sexual, mas também o racismo, o machismo e tantas outras formas de opressão e de dominação na nossa sociedade.
Nós tivemos uma importante iniciativa do governo Lula, que foi a criação da Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+. Isso é histórico na nossa sociedade e é preciso continuar avançando. Um outro desafio envolve eleger parlamentares para mudar o cenário de composição das câmaras municipais e estaduais e do Congresso, que não representa o brasileiro em diversidade e pluralidade. Hoje o Congresso Nacional não tem nenhuma lei pró LGBTQIA+, ao contrário, o que existe são diversos projetos de lei que atentam contra a dignidade e a cidadania das pessoas LGBTQIA+.
Frente a esse cenário, quais são as reflexões direcionamentos que o eleitorado deve fazer neste ano de eleições municipais?
O eleitor e a eleitora têm que levar em consideração quem há propostas concretas para mudar a vida das pessoas. Nós vivemos numa sociedade muito desigual e isso repercute na ponta, lá na prática, em cada município, com a ausência de diversos equipamentos públicos, com falta de saneamento e tantas outras coisas. A questão é: quem tem propostas para legislar em prol da população?
Nós sabemos muito bem que setores fundamentalistas têm avançado cada vez mais para ocupar a política, levando suas pautas, suas demandas, seus interesses privados para o espaço público. É aí onde entra o diferencial de ter candidaturas, por exemplo, de pessoas LGBTQIA+. No último levantamento do voto LGBTQIA+, foram identificadas 548 candidaturas de pessoas LGBTQIA+ Brasil afora, entre vereadores, prefeitos e vice-prefeitos.
É uma marca importante, que demonstra que nós estamos ocupando esses espaços. Sou do Partido dos Trabalhadores (PT) e temos muita felicidade em falar que 30% dessas candidaturas estão vinculadas ao PT. Em segundo lugar temos o Psol. O que podemos tirar de lição disso é a percepção de que precisamos ocupar esses espaços em termos de representatividade, mas com um projeto político claro de mudança de vida das pessoas.
O diferencial é entender que candidaturas LGBTQIA+ não lutam apenas pelos direitos das pessoas LGBTQIA+. Quando chegamos ao parlamento, representamos o conjunto da população. Não estamos nos colocando no pleito eleitoral apenas para levar nossas lutas e pautas, mas para que a gente ajude a melhorar a qualidade de vida da população como um todo.
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Edição: Martina Medina