O pós-guerra nuclear no Brasil
Parte 4: Um retrocesso que poderá ser de séculos ou de milênios (parte 4)
Por Ruben Bauer Naveira*
Diante do trágico momento histórico a que chegamos, este artigo propõe pensarmos o impensável – como haverão de ser as nossas vidas em um pós-guerra nuclear –, e ele é composto por cinco partes, a serem publicadas em cinco semanas consecutivas, às sextas-feiras:
Primeira: “Não existe nenhuma ‘realidade’ única aos homens” , consiste em uma preliminar e necessária digressão a respeito da natureza intrínseca aos seres vivos, às pessoas e às sociedades, para fundamentação das demais partes;
Segunda: “Salvar o Dólar – ou morrer junto com ele”, discorre sobre o porquê de uma guerra nuclear no mundo ter-se tornado hoje bastante provável;
Terceira: “A morte não é só pelas bombas”, aborda as consequências diretas de uma guerra nuclear;
Quarta: “Um retrocesso que poderá ser de séculos ou de milênios”, trata das consequências indiretas e a longo prazo; e
Quinta: “Ou juntos, ou nada”, discorre sobre o que seria possível tentarmos fazer para lidar com essas consequências.
AVISO: o conteúdo desta parte contém descrições potencialmente perturbadoras daquilo que sucede após uma guerra nuclear, inclusive nos países que não tenham sido diretamente atacados. Se você é sensível e/ou não lida bem com ansiedade e angústia, considere não ler.
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A única coisa que se pode afirmar com absoluta certeza quanto a um pós-guerra nuclear é que TODOS os seres humanos sobre a face da Terra serão atingidos.
Muitos milhões morrerão, muitos mais milhões ficarão seriamente feridos, mas, mesmo aqueles que não sejam diretamente alcançados pelas bombas também sofrerão bastante.
TODOS perderão muito, e é por isso que esta discussão é um tabu. Uma coisa é assistir um filme como “O Dia Seguinte” (“The Day After”, de 1983) em uma época em que a dissuasão mútua ainda era um dogma. As pessoas podiam ficar chocadas com o filme, mas ele não deixava de ser tomado por ficção.
Outra coisa complemente diferente é postular que a guerra nuclear muito provavelmente virá (como foi feito, na segunda parte deste texto) e, em seguida, passar a discorrer sobre os seus efeitos, e sobre o que seria possível fazermos para tentar administrá-los.
Diante da perspectiva da perda, que será real para todos, a imensa maioria das pessoas se recusará sequer a admitir a possibilidade de uma guerra nuclear, muito menos cogitar sobre como será a vida delas (ou a sobrevivência delas) em um mundo pós-nuclear.
Elas simplesmente se recusarão a entrar em contato com essa perspectiva, e isso é perfeitamente compreensível, não cabe de modo algum julgá-las.
Mas, se tudo o que levarmos em conta são essas posturas individuais, nem era para este texto ter sido escrito.
Que a guerra então venha se e quando tiver que vir, e, nessa hora, cada um que lide com o seu destino – tal como tem sido até aqui, cada um por si e Deus por todos.
Somos, porém, partes de um todo maior, estejamos ou não conscientes disso. Somos partes da natureza, somos parte do planeta e somos parte do universo. Somos, sobretudo, parte da espécie humana, e assim deveríamos perceber que temos, todos, responsabilidades para com ela.
É claro que há o risco de que a humanidade acabe extinta, mas, muito possivelmente, ela prosseguirá a sua caminhada, mesmo em meio à dor e sofrimento indizíveis.
Continuará a haver vidas humanas no futuro, com riso e choro e tudo o mais que nos faz humanos, senão as nossas, as dos nossos filhos e netos, e as dos filhos destes, e as dos filhos dos filhos.
Eu espero estar errado, e que jamais aconteça uma guerra nuclear. Porém, se houver, será nosso dever conseguir lidar com as consequências, e seguir adiante.
O que aconteceria então com o Brasil, em uma guerra nuclear?
Bem, acreditemos que o nosso país não tenha sido bombardeado. E suponhamos que não haja nenhum outro efeito incidente, como inverno nuclear ou pulso eletromagnético (tratados à terceira parte deste texto).
Se for esse o contexto, nós poderemos então seguir adiante com “vida normal”? Mas de jeito nenhum.
A economia se divide em setores primário (agricultura, pecuária, mineração), secundário (indústria) e terciário (comércio e serviços). Há ainda o setor público.
A agricultura, a pecuária e a mineração existem no Brasil basicamente para atender à exportação.
Os principais mercados são a China, os Estados Unidos e a Europa – todos arrasados (bem como outros como o Oriente Médio para as carnes, etc.).
As empresas deste segmento estão em falência no dia seguinte.
A indústria é globalizada (o Brasil não é nem de perto um país de economia fechada, como a Coreia do Norte – aliás, desde os tempos da colônia, a vocação econômica do país foi ser exportador de matérias-primas), e assim, mesmo que parte da indústria nacional seja voltada ao mercado interno, ela é dependente das cadeias de suprimentos globais. Que não mais existirão. Falência assim que acabarem os estoques.
Serviços. Os bancos, poucos e grandes no Brasil, completamente dependentes da internet, e interdependentes com relação aos mercados financeiros nos Estados Unidos e na Europa, não suportarão o desaparecimento destes.
Quebra dos bancos, quebradeira geral das empresas. Boa parte dos demais serviços bem como do comércio (que ademais é revendedor da produção agrícola e industrial, e também das importações) é também altamente dependente da internet – que não mais existirá (cabos submarinos terão sido cortados, satélites terão sido derrubados, data centers das grandes empresas de tecnologia terão sido destruídos pelas bombas, ou mais não existirá energia elétrica para fazê-los funcionar, o que dá no mesmo).
O setor público continuará a funcionar? Por quanto tempo mais, sem arrecadação (arrecadar de quem?), ou seja, sem mais dinheiro novo, e com o dinheiro que ainda sai do Banco Central desvalorizado ao quase pó?
Como disse Fred Reed (em artigo transcrito na terceira parte deste texto), “um país é um sistema de sistemas de sistemas, interdependentes e interconectados”.
A economia pode suportar o desparecimento súbito de um ou de alguns poucos setores, mas não tem como suportar o desparecimento repentino de praticamente todos eles.
O país continuará com a sua infraestrutura intacta, mas mesmo assim entrará em colapso.
Em um primeiro momento, o que entra em colapso? As empresas. Com as empresas, os empregos. Com os empregos, os salários. Com os salários, o poder de compra para subsistência das famílias.
Advirão o medo e o desespero e, logo, a fome e o caos. Haverá ainda alguma produção de alimentos? Sim. Mas, mesmo supondo que as pessoas disponham de dinheiro (e que esse dinheiro valha alguma coisa), COMO aqueles alimentos chegarão até aos consumidores, especialmente nas regiões metropolitanas e nas cidades grandes e médias?
Haverá empresas de transporte rodoviário de cargas operantes?
Haverá postos de gasolina nas estradas operantes?
Haverá supermercados nas cidades operantes?
Haverá transporte urbano de massa nas cidades operante?
“Tudo depende de trabalhadores continuando a comparecer ao trabalho em vez de tentarem salvar as suas famílias” (novamente Fred Reed). Pois é, não haverá.
Enfim, mesmo que não sejamos diretamente bombardeados, padeceremos o colapso. E aquilo que entrará em colapso, para além do capitalismo, será a civilização em si.
Há cerca de dez mil anos atrás, a humanidade descobriu a agricultura e os homens deixaram de ser nômades caçadores-coletores e se fixaram na terra, que passou a ser o fator primordial de avanço civilizatório (chame de progresso, desenvolvimento, prosperidade, geração de riqueza ou qualquer outro nome).
A partir de então a terra foi o mais importante de tudo para os homens (que inclusive se mataram por ela).
Há cerca de seiscentos anos (estamos arbitrariamente considerando como marco temporal o início da era dos banqueiros genoveses, no século XV), esse fator primordial deslocou-se, da terra (algo físico) para o capital (imaterial), e teve início o capitalismo.
Nos tempos contemporâneos, em que o dinheiro não tem mais lastro em ouro ou no que quer que seja, sabemos que o valor do mesmo provém da sua credibilidade, pressuposta socialmente.
A única diferença entre uma cédula de cem reais e uma de dois reais é o valor atribuído a elas por todos, porque fisicamente ambas são tinta sobre papel, e o custo para a Casa da Moeda fabricá-las é o mesmo.
Quando alguém morre, porém, o dinheiro e a riqueza por ele(a) amealhados não desaparecem, permanecem para serem apropriados por outros.
Há cerca de sessenta anos houve nova transição, e o fator primordial para o avanço das sociedades passou a ser o conhecimento. A diferença crítica é que o conhecimento somente existe dentro das pessoas.
Conforme a teoria da autopoiesis, examinada à primeira parte deste texto, registros de conhecimento como livros ou bases de dados em computadores não são conhecimento, são meros elementos do meio ambiente.
Os seres vivos (no caso, as pessoas em busca de conhecimento) compensam perturbações no seu ambiente (no caso, os registros de conhecimento a que estejam expostas) por meio de uma atualização das suas regularidades internas, e será essa atualização o que corresponderá ao conhecimento, e de modo necessariamente individualizado – e não os registros como livros ou bases de dados em computadores.
Dito de outra forma, registros de conhecimento tais como livros ou bases de dados em computadores somente têm serventia para que pessoas os acessem, e desenvolvam o conhecimento que detêm (se um livro não vier a ser lido por ninguém ele será inútil).
Quando alguém morre, o conhecimento detido por aquela pessoa morre junto.
Um pedaço de solo ou uma moeda independem das pessoas para serem o que são (respectivamente, terra e capital).
Já um livro não é conhecimento, conhecimento é aquilo que acontece dentro de cada pessoa que venha a ler o livro.
Mas, já que quando a pessoa morre o conhecimento dela morre junto, por que então o conhecimento não se perde?
Porque o tempo todo as pessoas o fazem circular, seja adquirindo novos conhecimentos (é o que você está fazendo neste exato momento, não somente por estar lendo este texto, mas principalmente por estar chegando às suas próprias conclusões a respeito de tudo isso que está lendo) seja repassando-os a terceiros (por infinitas formas: conversando, postando um comentário, gravando um vídeo ou áudio, escrevendo e publicando etc.).
Essa imensa teia é o que faz com que o conhecimento como um todo avance, a despeito de a toda hora estarem morrendo as pessoas que o detêm.
O problema é que a quase completa ruptura social que sucederá a uma guerra nuclear desfará praticamente por completo essa teia, interrompendo os processos de circulação e de renovação do conhecimento.
Suponhamos que você seja um trabalhador do conhecimento especializado no seu ramo de atividade. Você sabe aonde buscar conhecimento, aonde pesquisar, a quem procurar, com quem conversar. E sabe colocar em prática o seu próprio conhecimento bem como divulgá-lo, seja no seu ambiente de trabalho ou em outros.
Após uma guerra nuclear, se você conseguir se ajeitar da maneira mais satisfatória possível, você estará plantando legumes e verduras para conseguir dar de comer a si e à sua família.
Você ainda detém o seu próprio conhecimento, mas, como fazê-lo chegar até aquelas pessoas que poderiam dele se beneficiar? A teia rompeu-se.
Sem sistemas educacionais, o nível de formação que cada um possui no “dia zero” permanecerá estagnado, e com o passar do tempo se degradará (o conhecimento necessita ser exercitado – pense no que acontece com conhecimentos de matemática após anos sem emprego).
Com o passar dos anos, o analfabetismo crescerá. Crianças em particular não podem ficar longos períodos sem educação, pois existem “janelas” de aprendizado conforme a idade que não podem ser perdidas sem prejuízo para a formação cognitiva da criança.
Livros, apostilas, manuais, catálogos, cadernos de anotações etc. mofam e apodrecem ou, pior, servirão para acender fogueiras.
A maior parte do conhecimento hoje em dia encontra-se armazenado em meio digital, requerendo pessoal especializado para a manutenção dos respectivos sistemas, além de suscetível à falta de energia elétrica.
Tudo o que tiver sido armazenado “na nuvem” ou em qualquer outro lugar da internet (vídeos do YouTube, por exemplo) já terá sido irremediavelmente perdido.
As baterias de celulares, tablets, laptops e notebooks, ainda que seja restabelecida energia elétrica para recarga acabarão por se esgotar, e não serão repostas. Ou pior, uma bomba de pulso eletromagnético pode instantaneamente destruir todos eles.
Com o passar dos anos, pessoas morrerão e levarão os seus conhecimentos para a tumba, sem os terem repassado.
O conhecimento detido pela humanidade como um todo se perderá, e haverá um significativo retrocesso civilizatório – poderemos retroagir à Idade Média, com o que então levará algo em torno de cinco séculos para reprendermos tudo de novo e retornarmos ao ponto onde estamos hoje, ou, pior, à Idade do Cobre – e aí serão cinco milênios.
O advento dos computadores foi o fator que desencadeou a passagem do capital para o conhecimento como o principal motor do mundo, há cerca de sessenta anos.
Um computador opera a seu nível eletrônico, ou “de maquinário” por assim dizer, com apenas dois estados (desligado ou “zero” e ligado ou “um”) para cada uma das suas células, e tudo o que computadores fazem é realizar com essas suas células sucessivas sequências de uma única operação numérica, a soma.
Porém, eles fazem isso de uma forma tão mais veloz do que a mente humana que qualquer outra operação matemática, por mais complexa que seja, pode ser decomposta (ou seja, programada) em uma infinidade de operações de soma, e ainda assim o cálculo será realizado muito velozmente.
O computador, ao liberar os cientistas e engenheiros da tarefa de efetuar cálculos matemáticos, levou a um aumento extraordinário na produtividade destes.
Na sequência, uma série de outras tarefas que desde sempre eram feitas de forma manual pelas pessoas, como a redação de textos e documentos e a impressão dos mesmos, também foram objeto de programação (ou seja, foram convertidas para infinidades de sequências de somas, naquilo que era então chamado de “linguagem de máquina”), devido ao que o volume de registros de conhecimento detido pela humanidade passou a avançar de forma exponencial.
Não tardaria que o acesso a toda essa base de conhecimento fosse ele próprio automatizado, bem como que as pessoas passassem também de forma automatizada a identificar outras pessoas passíveis de serem contactadas segundo as necessidades delas ou os seus interesses em comum.
Como resultado, a produção de conhecimento explodiu.
À medida do avanço vertiginoso das capacidades de processamento, no espaço de poucos anos computadores pequenos e compactos, bem como relativamente baratos, passavam a dispor de capacidades correlatas às dos então chamados “computadores de grande porte”, de alto custo.
Com a vasta proliferação desses computadores menores surgia a necessidade de um padrão universal para interconexão entre computadores, em substituição às redes exclusivas (então chamadas proprietárias) próprias aos diferentes fabricantes, necessidade que foi resolvida na década de 1990 em favor da rede chamada World Wide Web ou internet, uma evolução da Arpanet, que havia sido criada na década de 1960 no âmbito do Departamento de Defesa dos Estados Unidos.
A partir de então, mostrou-se mais vantajoso para praticamente toda a computação no mundo (que aqui podemos chamar de “genérica” uma vez que se trata de mera capacidade de processamento, tornada commodity) passar a operar de forma distribuída sobre a internet, universalizando o acesso aos dados localmente gerados ou tratados, porém na prática tornando a computação refém da internet.
A outra face dessa moeda são os nichos daquela computação a que podemos chamar de “especializada” os quais continuaram a se dar de forma centralizada, nos agora chamados supercomputadores (por exemplo para meteorologia).
A contrapartida, até agora despercebida, para todo esse vertiginoso avanço científico e tecnológico da humanidade na chamada “era do conhecimento”, foi a vulnerabilidade decorrente da extrema dependência das pessoas e das sociedades em relação aos computadores e à sua rede única, a internet.
Em um pós-guerra nuclear essa vulnerabilidade cobrará um preço inimaginável.
Por volta de 1970 o advento das calculadoras eletrônicas (que são computadores pré-programados para a realização de operações matemáticas) havia promovido uma revolução silenciosa – até então, todos aqueles profissionais que necessitavam de cálculos matemáticos os faziam manualmente, em um processo tanto demorado quanto sujeito a erros.
Da mesma forma, nas escolas se ensinava aos alunos a efetuar cálculos complicados “na mão” (papel, lápis e borracha), no máximo com recurso a tabelas de trigonometria e logaritmos.
Fato é que a imensa vantagem que as calculadoras (e, depois delas, as planilhas de computador) proporcionaram em termos de velocidade, confiabilidade e precisão teve como contrapartida a desvantagem de levar as pessoas a abstrair esse COMO se chega aos resultados dos cálculos.
Em um pós-guerra nuclear, em um mundo em que praticamente não haverá mais calculadoras (os modelos “de bolso”, como os movidos a energia solar, são praticamente descartáveis, com curta vida útil; pilhas se esgotarão; os modelos mais duráveis como laptops ou notebooks são dependentes de energia elétrica para recarga das baterias, sujeitos como os demais ao risco de um pulso eletromagnético, e de todo modo deixarão de funcionar quando as baterias se exaurirem), as pessoas terão imensas dificuldades em efetuar cálculos além do básico.
Retrocesso correlato ocorrerá com a atividade de programação de computadores (com a manutenção dos sistemas hoje existentes sendo também ela uma atividade de programação): os programadores de hoje não mais programam a partir do hardware (em “linguagem de máquina”) decompondo tudo em sucessivas sequências de somas de “zeros” e “uns”, eles agora programam sobre programações feitas no passado e já consolidadas que foram sendo incorporadas ao hardware – camadas sobre camadas sobre camadas de programação prévia.
Assim como as camadas de cálculos incorporadas nas funções avançadas das calculadoras e planilhas, essas camadas de programação pré-dadas são abstraídas pelos programadores (um programador de games online, por exemplo, se atém somente à estética dos elementos na tela, ignorando as milhares de horas de programação prévia que estão por detrás de cada comando de animação que ele aciona).
Do mesmo modo como os engenheiros de hoje não mais compreendem os princípios matemáticos por detrás dos seus cálculos, também os programadores de hoje não mais detêm a capacidade de programar a partir do hardware.
Na próxima sexta-feira, dia 30 de agosto , a quinta parte deste texto: “Ou juntos, ou nada”.
*Ruben Bauer Naveira (contato e pix [email protected]) é ativista, pacifista e autor do livro Uma Nova Utopia para o Brasil: Três guias para sairmos do caos (disponível aqui).
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