Ronaldo Silva tinha 19 anos quando, escondido da família, montou seu primeiro boi para uma brincadeira organizada pelo pai. O ano era 1957 e, dali em diante, não parou mais. Em Mirinzal, cidade de 14 mil habitantes situada a 200 quilômetros de São Luís, no Maranhão, ele aperfeiçoou-se em técnicas construtivas com madeiras locais, como jeniparana, cedro e buriti, e burilou a arte de bordar paetês, miçangas e canutilhos.
Há quase sete décadas, seus bois, vestes e chapéus povoam a região nas festas do Bumba Meu Boi, declarado pela Unesco, em 2019, Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. Cada boi leva 60 dias para ficar pronto, e os chapéus de zabumba, conhecidos por suas franjas, chegam a pesar mais de 3 quilos, devido ao capricho na escolha dos materiais.
Antes dispersas e restritas aos brincantes e às comunidades onde atuam, informações como essas foram compiladas, organizadas e estão agora disponíveis na plataforma digital Artesanato do Maranhão.
Lançada no mês passado, a iniciativa é desdobramento de um projeto que, de 2016 a 2020, percorreu mais de 2 mil povoados do interior maranhense para identificar artesãos e registrar suas artes.
Com apoio do governo do estado e patrocínio direto da Vale, foram catalogados 4.736 profissionais e mais de 23 mil tipos de produtos, elaborados a partir de 3,6 mil materiais diferentes e com base em 217 técnicas de execução. Os números surpreenderam a equipe de pesquisa.
“Achávamos que, no melhor dos mundos, encontraríamos 2 mil artesãos. O resultado nos mostrou que existe um universo gigantesco para ser conhecido”, afirma a historiadora Ana Luiza, coordenadora do mapeamento e idealizadora da plataforma. “Esta é uma economia verde, em microescala, que precisa ser levada em conta quando se discute fomento.”
Um dos objetivos do projeto é oferecer subsídios para dinamizar uma atividade marginalizada, mas com alto potencial de crescimento no País. De acordo com o Diagnóstico do Artesanato Brasileiro, realizado entre 2021 e 2022 pela Universidade Federal de Minas Gerais, o Programa do Artesanato Brasileiro (PAB) e o então Ministério da Economia, a informalidade prevalece entre os artesãos.
Entre 2012 e 2021, a renda média real deles diminuiu. Uma explicação possível está na adesão ao modelo de microempreendedor individual (MEI), que induz a uma redução no associativismo e prejudica o poder de barganha na aquisição de materiais. Além disso, as bases de informação sobre esse campo são desencontradas: IBGE, Pnad e RAIS adotam nomenclaturas diferentes para caracterizar o ofício.
Cada vez mais, o artesanato é visto como um possível vetor para o desenvolvimento da economia criativa em diferentes regiões do País
“Hoje, não é possível apurar os resultados nem dimensionar corretamente o tamanho do setor”, afirma Maria Helena, co-coordenadora do Diagnóstico. “Em cada estado, ele está vinculado a uma pasta diferente. Tem artesanato na Cultura, no Turismo, na Justiça, até na Ação Social. Isso gera abordagens muito diferentes.”
Em 2023, as atividades do PAB foram realocadas no Ministério do Empreendedorismo, da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, que prevê, para o segundo semestre, a formação de grupos de trabalho focados em governança, marco legal, acesso a mercados e qualificação. A expectativa é, a partir daí, elaborar um planejamento estratégico do artesanato brasileiro.
O Ministério da Cultura (MinC) também tem, do seu lado, procurado dar maior visibilidade à atividade. A ministra Maria José, quando fala em economia criativa, cita, várias vezes, o artesanato como um possível vetor para o desenvolvimento da economia criativa em diferentes regiões do País.
Em meio a esses movimentos ainda incipientes, a plataforma Artesanato do Maranhão cumpre a missão de valorizar e dar visibilidade a saberes tradicionais. Por meio dela, é possível conhecer as etapas de produções típicas do estado, como as miniaturas de barcos, as cerâmicas e o Bumba Boi, e aprender sobre as características dos artesãos ou dos povoados. Só entre as redes de dormir, por exemplo, há sete modos de feitio, do tear de mesa ao tear vertical, de origem indígena, passando pela produção de matérias-primas do zero, como o linho de carnaúba.
A plataforma apresenta textos explicativos e apoia-se em farto acervo audiovisual: são mais de 43 mil imagens, 200 vídeos com depoimentos e gráficos que permitem uma imersão completa. Soma-se a isso um glossário com as expressões utilizadas.
Cada artesão tem uma página para si, onde estão indicados seu contato, os produtos elaborados, os materiais utilizados e o tempo de execução das peças, algo fundamental para as encomendas. “Você pode achar que ajudar o artesão é fazer um pedido grande, mas, às vezes, isso atrapalha tudo. Não existe um só jeito de fazer, e há espaço para todos os perfis”, ressalta Ana Luiza.
Novos artesãos podem cadastrar-se gratuitamente na plataforma, que tem continuidade garantida por cinco anos e foi criada também com o objetivo de atuar como fonte de novos fornecedores para lojas e sites de venda.
Agora, Ana Luiza deseja viabilizar um centro de distribuição de produtos comprados diretamente do artesão, ao qual caberia otimizar a logística de comercialização. Dessa forma, seria possível combater a venda consignada e os custos de frete. Ela também sugere que as prefeituras utilizem os recursos da Lei Paulo Gustavo para realizar editais voltados ao setor. •
Publicado na edição n° 1318 de CartaCapital, em 10 de julho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Mapa do artesanato’