Roseli Faria, Presente!

por Sérgio Guedes-Reis

As pessoas lidam com a perda de alguém querido de formas muito diferentes. Viver o luto e a experiência do vazio que parece ser intrínseca a ele exige que cada um coloque em campo seus melhores mecanismos de defesa para que seja possível seguir em frente, derrotando a tristeza e a indignação. Eu escrevo. Faço isso para tentar dar algum sentido à coleção de pensamentos soltos que não saem da cabeça enquanto não forem positivados; colocá-los no papel também fornece a sensação de que a ferida, enfim, possa ser suturada. Mas escrevo também para que não esqueçamos quem perdemos; para que rememoremos histórias de quem se foi e que nos formaram; e para que os que vêm depois de nós entendam e estendam legados de quem sequer puderam conhecer.

Nós perdemos Roseli Faria. A mulher negra, filha da escola pública de Sorocaba/SP e de pais da classe trabalhadora, nascidos e de família de lavradores na fazenda de Monteiro Lobato, no Vale do Paraíba; registrada no Paraná como parte da itinerância do trabalho do pai, operário atuante na construção de rodovias da região. A economista formada pela Universidade de São Paulo, servidora pública da carreira de Planejamento e Orçamento do Governo Federal brasileiro, ex-presidenta da respectiva associação de servidores e com destacada atuação não só no Ministério do Planejamento e Orçamento, mas também no Ministério do Desenvolvimento Social e no Ministério da Justiça. A líder em discussões sobre políticas de cotas no serviço público federal, sobre o combate à desigualdade e à discriminação na burocracia, sobre o papel e o lugar das mulheres pretas na construção de um Brasil justo, sobre a inclusão dos pobres no orçamento público – como ressaltou o Presidente Lula em sua postagem no X (https://x.com/LulaOficial/status/1966216771024585185) em homenagem à Rose, como a conhecemos.

A candidata ao Congresso em 2022, à frente de uma bela campanha na qual investiu tantas forças e que contribuiu para que nosso país começasse a se levantar dos escombros. Saímos, enfim, do período sombrio que o afligiu e lhe ceifou, pelo descaso, centenas de milhares de vidas, a soberania alimentar e a integridade pública. Rose construiu esperança quando o status quo se esmerava, enfim, em tudo desconstruir, e a reação social se consubstanciava em medo, raiva ou desilusão.

Eu perdi uma amiga muito querida; para meu filho, ela era a “tia Rose”. Foram tantos os projetos implementados, por vezes a partir de algum almoço de sexta-feira, ou de algum chiste trocado entre amigos no WhatsApp. Dessas interações, criamos vários movimentos.

O “Não Vai Ter PEC” foi formado essencialmente para se opor à aprovação da Proposta de Emenda Constitucional n° 63/2013, a qual resultaria no pagamento em duplicidade do Adicional por Tempo de Serviço aos Magistrados e Membros do Ministério Público. O “Todos pela Constituição” buscava explicar o sentido progressista da Carta Magna e defender o Estado de Direito no Brasil em uma época de grande excitação populista na opinião pública – pautada na ideia contida na frase de Victor Hugo citada no histórico voto de Cármen Lúcia no mesmo dia em que Rose nos deixou: “O mal feito para o ‘bem’ continua sendo o mal”. Esse mal nos levou a 2016, 2018, 2020… Ou, como escrevemos naquela faixa que levamos às manifestações da época: “Justiça não é justiçamento”.

Essa época nebulosa nunca fez frente à esperança que Rose trazia. Não é possível definir o seu ímpeto de ação de outra forma que não como sendo baseado nessa expectativa de construir um mundo melhor. Talvez a raiva tenha esse poder também, mas nunca foi esse o sentimento que associei à sua perene impulsão ao agir — o que, para mim, dá tanta sustentabilidade ao seu legado.

Foi, na verdade, a sua indignação com as injustiças o motor da sua contínua intervenção na realidade; sem jamais, contudo, permitir que a repulsa às forças que nos levavam ao atraso limitasse sua capacidade de interlocução com quem pensava diferente ou vinha de outro meio social.

Havia um pragmatismo não óbvio no seu ativismo: tantas iniciativas transformadoras advieram de sua incansável disposição de colocar pessoas para conversar; de articular, fazer pontes. Muitas vezes, os resultados dessas interações que só ocorreram por causa dela eram produtos que não continham, oficialmente, seu nome.  Mas nós, que lamentamos sua partida, sabemos da sua presença nos quatro cantos da Esplanada: produções acadêmicas, eventos, formações, normas, decisões políticas, priorizações orçamentárias. Ela está em todo lugar.

O vigor ao abrir tantas frentes de batalha simultâneas não esmorecia frente às adversidades, nem fazia concessões ao “mais tarde”. Havia em Rose um senso de que, se não pautado pela urgência, certamente se baseava na ideia de que o impossível era apenas aquilo que não havia sido tentado. A fonte para essa forma arrojada de militância era uma imensa vocação – e propensão – a elaborar maneiras de transformar a realidade que eram, sim, megalomaníacas.

Contraintuitivamente, essa era uma de suas facetas mais admiráveis e desejo que permaneça em quem teve a alegria de conviver com ela. Essa aptidão por, desavergonhadamente, querer o mundo era sua forma de demonstrar paixão por aquilo que somos e poderemos ser, se livres. Nos ambientes em que a mudança social se faz a partir de intervenções cosméticas e incrementais, pensar grande é um insulto. Para Rose, adotar essa lente grande angular era sua forma de diagnosticar o tamanho do problema; mas era, também, sua maneira de demonstrar o compromisso com a causa. Não havia nela o receio de soar ridícula ou excessivamente utópica; era quase uma diversão conceber grandes planos para mudar tudo o que estava aí.

São tantos os exemplos dessa vivacidade que estão, para mim, guardados como reminiscências, e que aproveito para convertê-los, na expressão de W. Benjamin, em rememorações a animar as lutas por emancipação. Eu convido cada um que ler este texto a completá-lo com suas próprias lembranças potentes. Com carinho, tenho na memória esforços absolutamente sui generis que empreendeu na época em que buscávamos, como uma mobilização de vanguarda, alertar sobre os supersalários na Magistratura e a gritante e crescente desigualdade no setor público brasileiro.

Coerente com as preocupações que manifestou até as nossas últimas conversas, Rose desejava tornar as pautas da democratização do Estado e da redução das desigualdades intraestatais questões sociais, e não apenas inquietações pontuais de acadêmicos ou líderes de sindicatos da burocracia. Ela acreditava que pagar salários milionários a alguns servidores já muito bem remunerados não era só uma insanidade em um país tão desigual e carente de recursos para políticas públicas basais; era também uma nódoa à própria possibilidade de termos uma República, dada a esdrúxula realidade de termos julgadores ricos decidindo com suposta propriedade o futuro de praticantes de furtos famélicos.

Por sinal, esse era um problema sobre o qual eu pouco havia refletido até chegar a Brasília, e me impactou o bastante a direcionar, vários anos depois, o tema do meu doutorado. Em oposição ao vigoroso pensamento liberal reinante, para Rose a Constituição cabia, sim, no orçamento. Mas não era possível realizar o sentido da Carta Magna enquanto o Estado continuasse a atuar como um Robin Hood às avessas.

Ainda em 2013–14, entregamos centenas de panfletos a quem passava na Rodoviária do Plano Piloto com explicações sobre o orçamento público e o problema dos supersalários; na iminência da votação da PEC, decidimos visitar gabinetes de senadores. Eu estava satisfeito por entregar nosso material a três ou quatro parlamentares mais simpáticos à questão, dado que, no momento, uma grande maioria era favorável ao pleito dos juízes e parecia viável apenas marcar posição. Rose, no entanto, não desanimou enquanto não visitou todos os 81 gabinetes — um dos textos foi lido pelo Senador Roberto Requião em plenário; a PEC nunca foi votada e o Adicional só passou a ser pago após controversas decisões administrativas dos próprios tribunais, em 2022.

Nem todas as lutas resultaram em vitórias; mas, em todas as batalhas em que entrou, enfrentou as adversidades, à sua forma, como espírito livre, desafiando convenções.

Apliquei-me, com o melhor das forças, para que esta, a batalha decisiva pela vida, se encaminhasse de outra forma e produzisse outro resultado. Esmeramo-nos, como comunidade, nesse projeto. A esperança pela cura — a mesma esperança que iluminava suas lutas por um Brasil melhor — perdurou por todos os momentos dessa travessia tão difícil.

Mas não foi possível viabilizá-la. Com a idade, se aprende que nem tudo, nem na política, nem na saúde, se resolve apenas com vontade. Há desafios no mundo real que tornam a conversão da energia potencial em cinética quase uma alquimia. A enorme frustração resultante desse insucesso, contudo, só será aplacada pela força intransponível do tempo, e nada mais.

A caminhada final, não sem dor, foi feita de mãos dadas e com muito acolhimento; mais de uma centena, talvez, tenha a visitado nesta última semana. Nesse contexto, não é tarefa trivial aceitar a partida de alguém tão jovem, tão querida, cheia de vida e ainda capaz de produzir contribuições tão relevantes para nossa sociedade.

O ferramental que muitos de nós temos à disposição para lidar com a morte é quase sempre muito limitado. Como sociedade, fomos criados para celebrar a vida, para existirmos para sempre, aspirando à eternidade a partir da transmissão intergeracional de legados. Mas como conciliar isso com a dor real de quem, como meu filho pequeno, descobriu que Rose, como todas as pessoas, é única, não poderá jamais ser substituída e não poderá estar aqui, como pediu, quando ele for adulto? Uma saída é pensar que a finitude, grande certeza clínica, não precisa ser fim-de-tudo. Nosso desafio é soprar diariamente as centelhas de esperança que Rose nos deixou. A prática de manter a brasa acesa deverá ser nosso critério da verdade e nosso compromisso em honrar seu legado.

Enquanto escrevia estas notas, lembrei-me das aulas de filosofia do tempo com Maria das Graças de Souza e de Sêneca, talvez um pequeno antídoto contra esse vazio, talvez um paradigma interpretativo sobre Rose, por vezes indecifrável em sua complexidade. Sobre a brevidade da vida, dizia:

“não temos pouco tempo, mas desperdiçamos muito. A vida é longa o suficiente e nos foi dada generosamente para a realização das mais altas empreitadas, se toda ela for bem empregada; mas quando se dissipa no luxo e na negligência, quando se gasta com nada de bom, só então, constrangidos pelo fim inescapável, sentimos que passou enquanto não percebíamos que passava. É assim: não recebemos uma vida breve, mas a tornamos.”

— Sêneca, Da Brevidade da Vida

Tempo e vida são coisas diferentes. Viver muito tempo e existir muito tempo são coisas diferentes. Na minha própria trajetória, descobri que há indivíduos que irradiam frequências mais baixas ou mais altas; liberam menos ou mais energia. Rose, sem dúvida, pertencia ao último grupo. Para nós que ficamos, seu tempo foi curto demais. O tempo que teve ao longo de sua vida, porém, foi prenhe de sentido. Não tendo vindo ao mundo a passeio, transformou como pôde as barreiras que teve de superar ao longo de sua trajetória em degraus mais suaves a facilitar a caminhada das próximas gerações. Uma homenagem ao futuro, mas também a seus antepassados.

Intensa. Inconformada. Inquieta. Altiva e inintimidável. Impossível não se contagiar com sua energia. É por isso que, ao fecharmos os olhos e cultivarmos sua memória, vemos um poderoso lampejo. Mas ele não precisará ser fugaz, pois continuará a nos iluminar enquanto formos capazes de nos aquecer com essa luz. Luz inesquecível que ainda foi capaz de irradiar na adversidade absoluta ao receber, como “tia Rose”, um desenho e flores do meu filho.

Não cabe neste espaço discorrer sobre a existência de Deus ou sua eventual predileção por jogar dados. O fato é que Rose partiu em um 11 de setembro, um dos dias em que mais esperança pudemos sentir em muito tempo sobre o funcionamento das nossas instituições e a realização de nossa Constituição.

A esperança de Rose: um presente. Roseli Faria, presente.

Sérgio Guedes-Reis

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Last Update: 15/09/2025