“Parou, parou, parou, parou… Quero saber o que vocês estão indo fazer?”, indaga o homem com identificação da SPTrans. “Ô, senhor. Vou só ali cometer um assalto, né?”, responde o motociclista, com um passageiro na garupa. “Mas não estão usando aplicativo não, né? 99, Uber…”, insiste o fiscal. “Trabalhar não, só assalto mesmo”, garante o condutor da moto. “Então tá de boa, pode ir. Tá tranquilo. Só não vai usar aplicativo, hein?”

O insólito diálogo faz parte de uma encenação gravada pelo vereador Lucas Pavanato, do PL, para criticar as blitze da prefeitura para apreender motos de trabalhadores que fazem transporte de passageiros na capital paulista. Apoiador de Pablo Marçal e apadrinhado por Nikolas Ferreira, o influenciador bolsonarista foi recordista de votos nas eleições para a Câmara Municipal de São Paulo em 2024 e está inconformado com a cruzada movida pelo prefeito Ricardo Nunes, que se apresenta como um ardoroso defensor da agenda liberal, contra os chamados mototaxistas.

No mais recente capítulo do imbróglio, a 7ª Câmara do Direito Público do Tribunal de Justiça considerou válido o decreto da prefeitura que impede a prestação do serviço em São Paulo, oferecido pelas plataformas 99 e Uber. Na segunda-feira 27, o desembargador Eduardo Gouvêa determinou a suspensão imediata do transporte de passageiros por motociclistas, mas isentou as plataformas do pagamento de multa diária de 1 milhão de reais, como havia pleiteado a prefeitura.

Mais de cem motos foram apreendidas pela prefeitura. As plataformas ficaram ilesas, sem sofrer sanção alguma

A bem da verdade, Nunes nunca quis se indispor com as big techs. Só aventou a possibilidade de responsabilizá-las após o caso ser ajuizado. Antes disso, focava na punição aos trabalhadores, por meio de uma série de fiscalizações da Guarda Civil Metropolitana, da SPTrans e da Companhia de Engenharia de Tráfego, que resultaram na apreensão de mais de cem motos. Pavanato, que se declara independente da base governista de Nunes, ensina aos mototaxistas uma estratégia para escapar do cerco: “Você não é obrigado a entregar o celular para verificar se está usando o aplicativo”.

A histriônica oposição de Pavanato enfureceu o prefeito privatista, ora “indignado” com o fato de grandes empresas visarem apenas o lucro, “desconsiderando os riscos às vidas das pessoas”­. Para Nunes, a chegada de mototáxi na maior cidade da América Latina pode intensificar a violência no trânsito. Apenas em 2024, foram registradas 483 mortes em acidentes com motocicletas na cidade, alta de 20% em relação ao ano anterior.

Trânsito violento. Quedas e colisões de moto provocaram 483 óbitos na capital paulista somente no ano passado – Imagem: Renato Luiz Ferreira

A preocupação é plausível, mas um tanto tardia, observa o motofretista Júnior Freitas, que trabalha sobre duas rodas há 22 anos. “Se o prefeito tem conhecimento desses números, por que nunca fez nada para disciplinar a atuação de plataformas como o iFood? Os serviços de entrega por aplicativo não são igualmente perigosos? O que tem de tão diferente?”

A 99 começou a oferecer o serviço de mototáxi em 14 de janeiro, amparada numa lei federal. A Uber entrou no segmento uma semana depois. A princípio, as duas empresas ofereceram o serviço apenas nas periferias, longe do Centro expandido. Alegam que é uma forma de complementar o transporte público, que ainda não alcança todos os pontos da cidade. Para impulsionar a modalidade, as plataformas ofereceram ainda uma série de benefícios aos mototaxistas: além de cobrar um porcentual menor a cada corrida, deram bônus de até mil reais para cada indicação de novo condutor disposto a arriscar-se para levar passageiros, apesar da fiscalização intensa da prefeitura.

Em 2024, o total de mortes em acidentes com motos na cidade aumentou 20%

À reportagem de CartaCapital, a 99 informou que realizava 200 mil corridas por semana na capital paulista. Os deslocamentos duravam, em média, de 5 a 11 minutos, e costumavam ter como ponto de partida ou chegada um terminal de ônibus ou alguma estação de metrô ou trem. A maior parte dos passageiros era de mulheres, que diziam se sentir mais seguras do que andando a pé, além de fazer o percurso em menos tempo.

Mesmo após o desembargador Eduardo Gouvêa isentar as plataformas de multa por descumprimento do decreto municipal, a empresa decidiu interromper a oferta do serviço. “A 99 já suspendeu, porque respeita as decisões judiciais, mas vamos recorrer na Justiça para voltar a oferecer”, esclareceu a assessoria de comunicação da companhia, que diz ter prestado apoio jurídico e financeiro aos trabalhadores cadastrados no aplicativo que tiveram suas motos apreendidas pela prefeitura.

Dúvida. “Os serviços de entrega por aplicativo não são igualmente perigosos? O que tem de diferente?”, indaga Freitas – Imagem: Redes sociais

Enquanto o bolsonarista ­Pavanato faz barulho pelas redes sociais, sua maior especialidade, a vereadora progressista Amanda Paschoal, do PSOL, entrou com representação no Ministério Público do Trabalho para pedir a suspensão das apreensões de motos, além de propor uma audiência pública na Câmara Municipal para discutir a regulamentação do serviço. Júnior Freitas lamenta que as punições tenham recaído exclusivamente nos ombros dos trabalhadores. “É sempre assim. Somos nós que arcamos com os prejuízos.” Ele conta que, no começo, também era contra a liberação do mototáxi, por acreditar que haveria mais mortes no trânsito, mas mudou de ideia após conversar com colegas e verificar que as condições oferecidas aos mototaxistas eram mais vantajosas que as ofertadas aos motofretistas que fazem entregas por aplicativo. “Estavam pagando bem mais.”

O tema divide a categoria. Presidente do SindimotoSP, Gilberto Almeida é totalmente contrário à liberação do mototáxi na capital: “Vai ser uma carnificina.” De acordo com ele, os benefícios oferecidos pelas empresas são “perfumaria”, e não devem perdurar muito. “Depois, eles voltam a cobrar as taxas de sempre, não oferecem mais bônus e o trabalhador ficará desamparado. É só mais uma forma de precarizar o trabalho.” Apesar de o serviço de mototáxi estar disseminado em várias capitais e centros urbanos, inclusive da Região Metropolitana de São Paulo, ele entende que o trânsito na capital paulista é muito mais perigoso.

Fonte: Rede Liberdade, com dados da Pnad Contínua, Pesquisa Nacional de Saúde, Cebrap e Abramet

A advogada e pesquisadora Amarílis Costa, presidente-executiva da Rede Liberdade, acompanha há anos o trabalho de motofretistas. Ela fez um estudo detalhado sobre o perfil desses trabalhadores e vê com preocupação a chegada dos mototáxis na capital. Não somente pela questão da segurança, mas pela precarização do trabalho. Segundo ela, grande parte da demanda por serviços emergenciais de ortopedia e traumatologia está relacionada a acidentes com motos. “Pior, a maior parte das vítimas não tem direitos trabalhistas nem acesso à seguridade social”, alerta.

Atualmente, os motofretistas trabalham mais de 44 horas semanais e recebem pouco mais de um salário mínimo, sem nenhuma estrutura para descanso remunerado, férias ou recolhimento de contribuições para a aposentadoria. Por isso, a advogada acredita que a regulamentação das atividades dos trabalhadores por aplicativo precisa reconhecer o fato de que eles são, na prática, empregados das big techs. “As plataformas exploram essa mão de obra sem ônus algum. Até os equipamentos de trabalho, como a moto e o celular, ficam a cargo dos próprios trabalhadores”, observa. “No fim do dia, para o motofretista não faz diferença se ele está levando uma caixa de pizza ou uma pessoa. A diferença é só o valor ofertado pelo serviço. O trabalhador faz o que tem de ser feito para sobreviver.” •

Publicado na edição n° 1347 de CartaCapital, em 05 de fevereiro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Roda presa’

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Last Update: 30/01/2025