Empresas como Uber, iFood e outros grandes monopólios tecnológicos se enquadram numa categoria denominada por economistas modernos de capitalismo de plataforma. O nome vem do fato de que essas empresas apenas agenciam transações entre “empreendedores” e consumidores, isto é, oferecem uma plataforma digital para que outros ofereçam seus serviços. Como intermediários, as plataformas não precisam arcar com os custos, por exemplo, de se operar uma rede de hotelaria – no caso do Airbnb – e podem apenas se concentrar em conectar da forma mais eficiente possível o prestador de serviços ao cliente.
Esse discurso, porém, não passa de cinismo. Um motorista do Uber, tido pelo monopólio como um “empreendedor”, nada mais é do que um funcionário sem direitos trabalhistas. Trata-se de uma grande artimanha jurídica para driblar mais de século de luta da classe operária que organizou-se em sindicatos e lutou por coisas hoje tidas como básicas, como jornada de 44 horas semanais, férias remuneradas, etc…
O caso de empresas como Uber e iFood, porém, já foi extensivamente explorado até mesmo na imprensa capitalista, uma vez que os trabalhadores dessa categoria passaram a se organizar e protestar. Nesta coluna, gostaria de tratar de uma prática que considero, em certa medida, ainda mais perversa. Uma empresa norte-americana conseguiu “inovar” ainda mais que essas outras plataformas e resolveu normalizar novamente o trabalho infantil.
Refiro-me à Roblox Corporation, criadora do “jogo” mais jogado atualmente nos EUA e na Europa: Roblox. Eu conhecia o jogo – ou melhor, plataforma – apenas de nome e acreditava tratar-se de um novo Minecraft. Não poderia estar mais errado. Finalmente entendi do que se tratava assistindo à reportagem muito interessante realizada pelo canal People Make Games sobre as práticas da empresa.
Roblox é menos um jogo e mais uma plataforma de criação de jogos, análoga a ferramentas profissionais como a Unity Engine ou a Unreal Engine. Seu público, porém, são crianças. A ferramenta se apresenta como acessível e pode ser utilizada de computadores pessoais, mas também de celulares e tablets. Nos EUA e no Canadá, a produtora oferece cursos em acampamentos para que crianças e adolescentes aprendam a programar e criar “experiências” para compartilhar com seus parentes e amigos.
Que história maravilhosa! Por trás desse fim lúdico e educativo, porém, há algo que muito se assemelha à ideia dos “empreendedores” do Uber. O Roblox, além de se apresentar como uma ferramenta educativa, se apresenta às crianças como uma forma delas ganharem “muito dinheiro”. O conto soa como música para os ouvidos do Joãozinho que ganha uma modesta mesada de R$20,00 dos pais – talvez menos, nestes tempos de crise.
Realmente, há pessoas que vivem de criar jogos no Roblox. Algumas até pagam pequenas equipes. Elas são, porém, em sua maioria, adultos. São, além disso, uma pequena casta privilegiada de centenas de pessoas num mar de mais de duzentos milhões de usuários da plataforma, em sua maioria, menores de 18 anos.
Ganhar dinheiro no Roblox não é difícil, é praticamente impossível.
Para que alguém encontre a sua criação, é preciso pagar a plataforma pela divulgação. Para isso, é preciso usar dinheiro real para comprar um dinheiro virtual, chamado Robux que, naturalmente, só pode ser usado em transações dentro do Roblox. O Robux é usado tanto para usufruir dos jogos criados por outras pessoas como para promover suas próprias criações.
Se você tiver a sorte de se fazer encontrar num mar de criações, porém, prepare-se para uma série de dificuldades para obter seus rendimentos. Para transformar Robux em dinheiro real, é preciso juntar ao menos 100 mil unidades da moeda digital (aproximadamente US$1.000,00). Além disso, prepare-se para deixar cerca de 75% dos seus rendimentos com a “benevolente” Roblox Corporation.
Os esquemas para prender os criadores de conteúdo na plataforma são os mais absurdos. Cobram uma mensalidade de US$5,00 dos pequenos desenvolvedores e lhes dão constantemente a esperança de que, caso não tenham rompido a barreira dos 100 mil Robux com sua última criação, sempre podem reinvestir o que possuem na plataforma. Recomendo novamente a reportagem citada acima – que está, inclusive, legendada em português – para mais detalhes!
O caráter reacionário do imperialismo é desprezível, mas, ao mesmo tempo, surpreendente. Quem iria esperar que o sistema fosse submeter crianças à vida de “empreendedor individual” desde cedo trabalhando mais de 10 horas por dia em suas plataformas e fazendo contas para reduzir seus custos e otimizar seus ganhos? Olhando pelo lado positivo, acho que em breve teremos sindicalistas experientes com 16 ou 17 anos de idade.