Roberto Kant de Lima: poucas páginas para muitas conquistas
por Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC)
A frase “o Brasil precisa ser estudado” é recorrente nos lábios de muitas pessoas. Cada vez que nos deparamos com algum fato que nos parece inusitado, em conversas cotidianas e informais, alguém está pronto para proferi-la. O que pode ser óbvio para muitos, mas nem tão óbvio para outros, é que o Brasil está sistematicamente sob análise científica.
Não é a NASA que se encarrega desses estudos e não se tratam necessariamente das representações da ciência em que pessoas de jalecos brancos pesquisam em laboratórios perigosos, como nos filmes e desenhos animados. Os cientistas que pensam o Brasil nas suas diferentes facetas e complexidades estão espalhados em diferentes lugares, espaços e instituições.
Podemos falar por páginas a fio sobre a questão das representações da ciência, que coincidentemente também estão sob o escrutínio científico sistemático. No entanto, neste texto o enfoque é pensar na ciência a partir de um cientista em especial: Roberto Kant de Lima. Por ocasião da sua partida – na última segunda-feira, dia 19 de maio – escolhemos honrar o seu grande legado para evocar a sua grandeza e demarcar as suas contribuições às Ciências Humanas e Sociais a partir da Antropologia.
Escolhemos publicar este texto no espaço desta coluna disponibilizada desde o ano passado pelo Jornal GGN ao Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC), não só porque se trata de um espaço institucional articulado por Kant de Lima, coordenador do instituto, mas também porque sua atuação científica e acadêmica sempre esteve vinculada ao empenho e ao investimento na divulgação do conhecimento e, nesse sentido, a uma permanente preocupação com as formas de se comunicar que, sem perder a sofisticação intelectual que nosso homenageado possuía, tinham como objetivo serem amplamente compreendidas por todos os públicos.
Estudar o mundo, a vida social, o Brasil, ou seja lá o que formos pensar que as Ciências Humanas e Sociais fazem, exige sempre um recorte: há entre o céu e a terra muito mais do que os nossos olhos alcançam a ver. Evocando uma máxima da filosofia: quanto mais conhecemos, menos certezas temos e somos mais conscientes das nossas ignorâncias.
O trabalho de Kant – forma como colegas, alunos e ex-alunos nos referimos a ele – se concentrava em temas específicos. Com sua infinita curiosidade, a sua mente ágil e o seu olhar aguçado, ele transitava por diferentes espaços, contudo, se concentrou principalmente em pensar sobre as práticas e as múltiplas racionalidades das pessoas inscritas em universos institucionais. Isto é, dedicou-se a estudar e dialogar sobre as formas como diferentes instituições que fazem parte do Estado administram conflitos de naturezas diversas, inclusive aqueles suscitados pelos significados e percepções dos agentes que as compõem, nem sempre homogêneos e muitas das vezes conflitantes. Afinal, as instituições são elas mesmas alimentadas pelo que podemos chamar, de forma muito pouco precisa, de cultura (ou cosmologias práticas e simbólicas). Quer dizer que aquilo que as pessoas fazem com e nas instituições por meio de suas razões simbólicas é informado e orientado por formas de conceber a vida social que, por sua vez, são moldadas por formas de ver e conceber a vida social.
Trajetórias
Como todos os cientistas, Kant teve uma trajetória de estudos e trabalho que foi moldando os seus interesses de investigação. A sua formação em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em 1968, com certeza contribuiu à atenção que deu ao sistema jurídico, ao acesso a direitos e à justiça.
Porém, a maneira criativa com que ele abordaria os assuntos seria diferente não fosse o desenvolvimento da sua pesquisa entre os pescadores tradicionais da praia de Itaipu, em Niterói (RJ), que não só lhe concedeu o título de mestre em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN/UFRJ) no ano de 1978, mas antes de mais nada e depois de tudo, também solidificou um conjunto de laços de afeto, carinho, solidariedade e amizade com os pescadores que até hoje fazem parte das pessoas que o acompanham sua trajetória – até a sua despedida.
Podemos dizer que observar a desigualdade de acesso a direitos no contexto da pesca artesanal na praia de Itaipu, por meio de pescadores inscritos no amplo universo das desigualdades de acesso ao espaço público e à cidadania, o inspirou a perguntar-se e concentrar-se em questionamentos sobre igualdade, legalidade e poder no Brasil, guiando-o a um segundo campo de indagação que marcaria profundamente a sua trajetória: a polícia no Rio de Janeiro.
Kant com frequência relembrava as surpresas de colegas de doutorado em Harvard, durante a década de 1980, com o trabalho de campo por ele proposto. Naquela época, tomar o sistema de Justiça criminal e, em particular, as delegacias de polícia como campos de pesquisa não era comum e tampouco foi tarefa fácil, mas era o caminho por onde as suas indagações o levaram.
Apesar de ter escrito sua tese apenas a partir dos dados construídos sobre o trabalho de campo na Polícia Judiciária do Estado do Rio de Janeiro, Kant já acumulava um extenso e amplo material sobre o funcionamento do sistema de justiça, ao qual, posteriormente, ele deu vazão em inúmeras publicações, individuais e/ou com dezenas de colegas e alunos. A obstinação de Kant como um dos seus traços de personalidade, jogaria um papel essencial na inovação das suas propostas sobre o sistema criminal, as tradições jurídicas e os processos de administração institucional de conflitos em perspectiva comparada. Os mecanismos de controle social seriam foco de suas elaborações e reflexões comparadas sempre atentas aos processos de exclusão e de naturalização da desigualdade.
Os caminhos da sua formação estiveram sempre com ele e foi através deles que podemos identificar Kant como uma referência original na consolidação da Segurança Pública como um campo do conhecimento, para além da dogmática jurídica e do campo militar.
O seu trabalho com a polícia mais tarde o levaria a articular e negociar um espaço na ciência para um campo tão importante da vida social, identificando e enfatizando o lugar dos operadores da segurança pública muito além da repressão e da violência, situando as suas ações numa complexa trama de composição do Estado e da vida social no Brasil.
Da mesma forma, Kant tornou-se uma referência na Antropologia do Direito de maneira mais ampla, ao enfatizar com frequência que só a polícia não dava conta de compreender os processos de desigualdade jurídica que caracterizam o direito e tradição jurídica brasileiros. Assim, olhar para o sistema de Justiça e para os processos de formação e reprodução no Direito foi também foco das suas reflexões e intervenções.
Invariavelmente, a complexidade do mundo fazia o Kant navegar em diferentes mares, pois através da sua mente rápida e brilhante, povoada de diálogos constantes com seus colegas e alunos, além das leituras que sempre alimentaram o seu ofício, semeou um amplo acervo de trabalhos que contribuem diariamente à pesquisa sobre os direitos humanos, o sistema de Justiça, as diversas fases e potências do conflito, além da teoria antropológica, a etnografia e o vigor metodológico das comparações tanto pelas diferenças quanto pelas semelhanças, elencadas pela sua experiência acadêmica nos Estados Unidos e pelas inúmeras oportunidades de diálogo com parceiros em diferentes lugares do Brasil e do mundo.
“O conhecimento não pode ser engaiolado”
Em concomitância ao processo de formação através do mestrado e do doutorado, hoje requisitos para tornar-se professor universitário, Kant já fazia parte do quadro de professores da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde lecionou desde o ano de 1974 até 2025, como professor Emérito, pouco dias antes de nos deixar.
A partir da UFF, ele se desenvolveu como cientista, empreendeu diversos projetos, lecionou com afinco e travou corajosas lutas para defender os produtos das suas pesquisas. Contudo, não é apenas na UFF que o seu legado se reproduz, pois o conhecimento, para Kant, não poderia ser engaiolado e nem encastelado para acesso de poucos: ensinou diferentes gerações, entre alunos e colegas espalhados pelo Brasil e pelo mundo. Carregava e praticava uma concepção da universidade pública como um espaço de trabalho, um lugar democrático onde a dedicação, o esforço e a implicação com os estudos, com a escuta e a observação atenta deveriam ser incluídos democrática e horizontalmente.
Ao mesmo tempo, a generosidade e o engajamento de Kant como professor ainda o levaram a atuar, junto com a professora e socióloga Maria Stella Amorim, entre 2010 e 2014, no programa de pós-graduação em Direito da Universidade Gama Filho e também, desde o ano de 2014, como professor na Universidade Veiga de Almeida (UVA) no Rio de Janeiro, na área do Direito, partindo da convicção da importância de transmitir e impulsionar a pesquisa empírica no Direito, em contraste com posições e estudos doutrinários e dogmáticos que mais do que questionar a realidade, reproduzem verdades já consagradas.
As suas práticas de construção de redes e a ênfase em espaços democráticos já haviam sido inicialmente institucionalizadas no Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas (NUFEP), da UFF, criado pelo professor Luiz de Castro Faria, no ano de 1994, com a participação de muitos dos seus colegas à época. Kant coordenou por décadas o núcleo que ainda hoje encontra-se ativo na universidade.
Como a ciência pode mudar um lugar?
Ainda na década de 1990, Kant participou ativamente, junto aos seus colegas do departamento de Antropologia da UFF da criação do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política (PPGACP) na universidade, onde ampliou os espaços de trabalho e especialização em Antropologia no Rio de Janeiro, que neste momento contava apenas com um programa de pós-graduação na área. Coordenou por 10 anos o PPGACP, que em momento posterior, a partir de seu árduo trabalho, tornou-se o Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA-UFF), hoje avaliado como de excelência na CAPES (nota 6).
A partir da UFF, Kant foi consolidando uma rede cada vez mais ampla de pesquisadores e grupos de pesquisa dessa e de outras instituições nacionais e internacionais. Essa rede consolidou-se em 2009 com a criação do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia. O INCT-InEAC tem sua sede na UFF, mas congrega uma rede nacional e internacional de grupos de pesquisa e programas de pós-graduação localizados em oito estados do Brasil e de nove países. Reúne mais de 100 pesquisadores associados e aproximadamente 200 pesquisadores em formação (https://ineac.uff.br ).
O INCT-InEAC, coordenado por Kant até o seu falecimento, tornou-se um dos poucos institutos da sua categoria dentro do campo das Ciências Humanas e Sociais. Junto a um enorme currículo de conquistas, em sua segunda aprovação como INCT em um edital público no início do ano de 2025, foi consagrado em segundo lugar no contexto nacional.
Ademais da criação do nosso INCT-InEAC, que cresce como referência nacional e internacional, Kant também esteve presente na negociação da criação do curso de bacharelado em Segurança Pública, que foi objeto de controvérsias internas na universidade, principalmente por parte de grupos que se opunham à institucionalização desse campo de conhecimento no âmbito das Ciências Humanas. Contudo, com a qualidade dos recursos humanos envolvidos no projeto e a convicção de Kant no seu empreendimento acadêmico, conseguiu tornar-se uma unidade acadêmica dentro da UFF como Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (IAC), que hoje em dia abriga o Programa de Pós-Graduação em Justiça e Segurança (PPGJS-UFF), criado no ano de 2018, com nível de mestrado acadêmico, além do Curso de Tecnólogo em Segurança Pública e Social.
Cabe dizer que a concretização destes espaços foi permeada por diferentes movimentos, em um esforço de formação e de reflexão acerca da Segurança Pública como um campo de pesquisa que busca enfatizar a participação civil e o Estado democrático de direito como parte das práticas do Estado. Por isso, também é importante salientar a participação de Kant no incentivo e na composição de cursos de especialização em Justiça e Segurança Pública, bem como na oferta de cursos direcionados às Guardas Municipai, além do curso Tecnólogo em Segurança Pública e Social em parceria entre a UFF e a Fundação CECIERJ (Centro de Ciências e Educação Superior a Distância do Estado do Rio de Janeiro).
A UFF não passou incólume aos 51 anos de participação de Kant em seu quadro. Além de tudo o que já foi dito neste texto, ele também participou da gestão da universidade entre os anos de 2014 e 2017 como pró-reitor de Pesquisa, Pós-graduação e Inovação (PROPPI). Kant levou para esse espaço uma prática, que já desenvolvia há anos com seus estudantes e pesquisadores, de gestão e de trabalho pela qual seria lembrado: a realização de reuniões toda segunda-feira que permitissem uma atualização constante e um diálogo aberto entre as divisões da pró-reitoria.
Durante essa gestão, também foi criada a área de Tecnologias Sociais, na Agência de Inovação (AGIR) da universidade, que foi inicialmente coordenada pelo professor Frederico Policarpo e posteriormente, até esse ano, pela professora Luciane Patricio. Trata-se de uma experiência inovadora que, como proposto por Kant, tem o objetivo de conceber as tecnologias sociais como uma construção conjunta de formas de intervenção que considerem as reivindicações das pessoas envolvidas nos conflitos e suas propostas de encaminhamento. Ainda na PROPPI, Kant conduziu a criação do Fórum de Periódicos da UFF, ciente da importância da discussão e apoio a políticas de divulgação e publicização do conhecimento e do trabalho científico.
Foi também durante este período que Kant estimulou e apoiou a criação do Comitê de Ética em Pesquisa em Ciências Humanas e Sociais da UFF (CEP-Humanas/UFF), uma iniciativa inovadora e atenta aos rumos das práticas científicas cada vez mais reguladas pelos parâmetros das ciências da saúde através de um rígido sistema de controle da ética em pesquisa vinculado exclusivamente ao Ministério da Saúde. O CEP-Humanas impulsionado por Kant e sua equipe foi criado no entendimento das particularidades da pesquisa empírica em Ciências Humanas e Sociais partindo do respeito aos interlocutores de pesquisa e das possibilidades sempre abertas de produzir conhecimento.
Trabalho em coletivo
Não é curioso nem deveria nos surpreender como, ao relatar em diversas ocasiões a sua trajetória, Kant jamais enfatizava alguma individualidade nas suas conquistas. Através delas, sempre reconhecia parceiros ou aproveitava as oportunidades para ensinar, para apresentar caminhos de complicadas negociações estratégicas sem as quais não seria possível alcançar o sucesso. Ele tampouco poupou relatos sobre os fracassos e empreendimentos mal sucedidos, com eles sempre apresentava um meio de luta, uma forma de continuar a produzir, a aprender, a ensinar e a fazer ciência.
Como mestre, Kant sempre esteve consciente de que a ciência não é produzida na solidão, como na imagem de algum eremita trancado numa torre de marfim. Ao contrário, a ciência se faz em todos os espaços, com a congregação de pessoas dispostas a pensar, dialogar e negociar visões de mundo diferentes e contrastantes.
Nesse entendimento, participou de diversos espaços de discussão e deliberação: foi vice-presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), entre os anos de 2006 e 2008, período em que também coordenou a Comissão de Direitos Humanos da instituição, da qual participou ativamente entre os anos de 2008 e 2014; integrou ainda como membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC); foi representante das Universidades Federais no Conselho Superior da Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ); além de sócio de outras importantes instituições tais como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
Inspiração
Infelizmente, Kant nos deixou. Logo ele que não foi apenas mais um cientista, mas altamente notado e admirado, conforme foi reconhecido em diferentes espaços, alcançando a honra de tornar-se professor emérito na UFF no ano de 2023, além de ter recebido a Ordem Nacional ao Mérito Científico (OMC), em 2008.
No INCT-InEAC ele foi criador, coordenador, mestre, amigo, guia e timoneiro. Esteve sempre engajado com os grupos pelos quais transitava, com uma atenção ímpar aos assuntos neles debatidos, sempre pronto a contribuir e comentar, escutando a todos sem distinção, reverberando o seu compromisso ético e político com a democracia, inclusão e horizontalidade. Um combatente, antropológica e humanamente falando, pela igualdade.
Kant continuará a nos inspirar através das suas obras, tanto aquelas que assinou individualmente, incluindo os seus livros A polícia na cidade do Rio de Janeiro (1994) e Antropologia na academia: Quando os índios somos nós (1985); quanto nas suas obras coletivas, nas quais fez questão de incluir e reconhecer à equipe com a que conviveu durante os seus anos de trabalho.
Sempre serão poucas as páginas para dar conta de sua trajetória e de seus empreendimentos e produções. Sempre serão poucas as palavras de reconhecimento agradecimento pelo tempo, dedicação e energia que dedicou à ciência e à Antropologia em particular, à produção do conhecimento e à sua institucionalização e divulgação para toda a sociedade, justamente em prol de formas mais justas e igualitárias de organização social. Nós, integrantes do INCT-InEAC, deixamos aqui essas poucas linhas em nossa homenagem e lembrando uma de suas frases para recorrentes, a encerramos com um alto e claro: “Para cima e para o alto!” Kant sempre presente!
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