Primeiro de Maio: do massacre de Chicago ao desencanto atual

Por Roberto Amaral*

E um fato novo se viu /Que a todos admirava: /
O que o operário dizia / Outro operário escutava./
E foi assim que o operário/ Do edifício em construção /
Que sempre dizia sim / Começou a dizer não.”
Vinícius de Moraes, O operário em construção

As esvaziadas festas de hoje, com as quais, graças ao feriado, comemoramos o 1º de Maio, nada guardam de familiar com suas dramáticas origens, que remontam ao massacre da Praça Haymarket (Chicago, 1886).

O Dia Internacional do Trabalho e da Solidariedade Proletária nasceu como uma marcha de lutas, protestos, greves e reivindicações de direitos.

O que poderiam os trabalhadores comemorar, naquela altura, submetidos que eram a jornadas de 12, 14 e até 16 horas de trabalho diárias que, com variações, atingiam homens, mulheres e crianças, tanto no velho continente que sediara a Revolução Industrial quanto nos emergentes EUA?

Haveria de ser um dia de luta da classe trabalhadora, então animada por socialistas e anarquistas, confiando no internacionalismo proletário — hoje reduzido a relíquia histórica.

O “Dia do Trabalho” nasceu como mobilização eminentemente política, revelando, em seus primeiros tempos, tinturas revolucionárias que, aos poucos, foram se esmaecendo até alcançarem a palidez de hoje.

Era claro seu escopo pedagógico, ao pretender lembrar e ensinar à categoria que os direitos são conquistados com luta (“O que cai do céu é chuva; o resto se conquista”), tanto quanto são perdidos quando ela enfraquece. E, assim, talvez se explique a contemporânea perda de direitos dos trabalhadores — o outro lado do remanso da luta popular e da crise política do sindicalismo.

E, no entanto, o trabalho — apesar das transformações que se operam nas relações de produção modernas e contemporâneas — continua no centro das contradições do capitalismo, mesmo em sua fase atual, que associa neoliberalismo e financeirização à revolução tecnológica, apontando para um cenário de mudanças ainda inimaginável aos olhos de hoje.

Uma mínima revisão histórica revela que a inconstância da valoração política do Dia do Trabalho (ou Dia do Trabalhador) reflete a própria crise político-existencial-organizativa do proletariado — palavra que, aliás, está desaparecendo de nossos dicionários.

Abate-se sobre ela a crise do trabalho, cujos principais indicadores são a precarização e a fragmentação dos vínculos trabalhistas, o individualismo da ideologia do empreendedorismo tomando o lugar da socialização (herdeira das linhas de produção agora espacialmente desfeitas) e, precarizando ainda mais a defesa de direitos, a frustração do sindicalismo como força política.

Regressemos a Chicago e à luta pela jornada de oito horas de trabalho, marcada por uma greve geral deflagrada em 1º de maio de 1886, sob o lema: “Oito horas para o trabalho, oito horas para o sono e oito horas para o que quisermos”.

Essa, uma das maiores conquistas dos trabalhadores no século passado, só seria adotada nos EUA em 1938 (governo Roosevelt), 52 anos depois, e no Brasil em 1932 (por decreto de Vargas). Só agora, como iniciativa parlamentar ainda sem o necessário eco social, é que se cogita do fim da escravizante jornada de trabalho identificada como 6×1.

O 1º de maio de 1886, mais do que um objetivo, foi apenas o ponto de partida de uma batalha sem fim, porque a contradição capital x trabalho é intrínseca ao capitalismo.

No dia 4 de maio, uma passeata pacífica caminhando pela Praça Haymarket foi interrompida pela explosão de uma bomba. Dando o sinal da essência do conflito, a polícia — suposto alvo — reagiu como sempre: atirando contra a multidão. Até hoje, nem os sistemas de segurança revelam, nem os historiadores conseguem estimar o número de mortos. O massacre, porém, ainda não fôra suficiente: era preciso nomear um inimigo. E este foi escolhido — como tantas vezes — entre imigrantes e anarquistas. Oito militantes são presos, julgados, e à míngua de provas, condenados à pena capital.

O 1º de maio como Dia Internacional do Trabalhador foi instituído pela Segunda Internacional no Congresso de Paris (1889) e, a partir de então, passou a ser celebrado com greves, marchas e os mais variados atos públicos, até tornar-se, como hoje, uma data universal.

Devemos a primeira comemoração do 1º de Maio no Brasil, em 1891, à militância de operários socialistas e anarquistas, em sua maioria italianos, que também estariam no núcleo das greves de 1917. Mas esse 1º de Maio cingiu-se a um pequeno comício na Rua da Moóca, em São Paulo.

Nos anos seguintes, chega ao Rio de Janeiro, a Porto Alegre e a outras poucas capitais, até espalhar-se pelo país. Não se contava com feriado nem com “festa cívica”, conservava-se seu caráter de protesto e reivindicação. Os atos consistiam em mobilizações operárias, passeatas e greves, sempre com caráter reivindicatório — e sempre enfrentando a repressão e a violência do Estado, que, no entanto, se apropriaria da data durante o Estado Novo (1937–1945), transformando-a em “dia cívico nacional”.

As greves sairiam do cardápio, as passeatas cessariam e os comícios deixariam as ruas para se acomodarem no Estádio do Vasco da Gama, no Rio de Janeiro, onde, após desfilar em carro aberto, o caudilho pronunciava seu esperado discurso anual dirigido “aos trabalhadores do Brasil” — sua base social de apoio.

Já no governo constitucional e democrático (1951–1954), Getúlio Vargas passou a assinar, no dia 1º de Maio, o decreto anual que fixava o salário mínimo, criado por ele em 1940, ainda durante a ditadura.

O 24 de agosto de 1954 encerra a primeira experiência de governo trabalhista em regime democrático. A ela se segue um regime de transição, custodiado pelos militares que haviam deposto Vargas. A normalidade constitucional só seria restabelecida com a eleição e a contestada posse de Juscelino Kubitschek (1955), até conhecermos, com o inconcluso governo de João Goulart, a segunda tentativa de regime trabalhista democrático, interrompida pelo golpe de 1º de abril de 1964.

As comemorações do 1º de Maio são retomadas com Juscelino (1956–1961). Expressam a conciliação como ideologia e projeto de governo: conciliação política nacional, conciliação com os interesses dos EUA e, sobretudo, a “harmonia entre capital e trabalho”.

Era o preço que JK decidira pagar para garantir a integridade do mandato, ameaçada por seguidas tentativas de impeachment e insurreições militares. A marca ideológica centrava-se no desenvolvimentismo — régua e compasso para todos os males nacionais, da pobreza à dieta democrática. Nesse sentido, é exemplar seu discurso no 1º de Maio de 1961:

“Tenho um interesse todo especial em vos dirigir a palavra, trabalhadores, neste Primeiro de Maio, ao falar-vos daqui de Brasília — cidade erguida pela energia de nosso povo, prova da eficiência, capacidade e dedicação do operário brasileiro. […] A batalha do desenvolvimento nacional, vale dizer, a batalha da justiça social, é o único meio de que dispomos para chegar a esse fim. A revolução do desenvolvimento é a vossa revolução. Ela não pode parar. Não deve parar”.

A carga simbólica do trabalhismo ressurge com João Goulart (1961–1964), ex-ministro do Trabalho de Vargas (demitido da Pasta por pressão dos militares após propor aumento de 100% do salário-mínimo) e seu herdeiro político.

Os pleitos centrais do sindicalismo e do trabalhismo são assumidos pelo discurso oficial e, a eles, somam-se bandeiras mais sensíveis à esquerda da época, como a reforma agrária e o controle da remessa de lucros ao exterior.

O movimento estudantil e os sindicatos são fortalecidos, o Partido Comunista (na ilegalidade desde 1947) passa a gozar de ampla liberdade de ação, e as organizações populares (inclusive as Ligas Camponesas) são estimuladas pelo governo. No plano internacional, o Brasil busca autonomia, aproxima-se dos “países não alinhados”, defende a soberania de Cuba e a autodeterminação dos povos.

Jango sai de Brasília e, em 1º de Maio de 1963, discursa para uma multidão no Estádio do Pacaembu, em São Paulo. Defende as “reformas de base”, o leitmotiv de seu governo:

“A reforma agrária é a base da democratização da terra. Não podemos mais aceitar que o camponês continue escravizado pela fome, enquanto milhões de hectares permanecem improdutivos. […] Milhões de brasileiros vivem nas cidades em condições subumanas. A casa própria, o aluguel justo, o saneamento e o transporte são direitos que precisam ser garantidos. […] Educação gratuita e obrigatória é um dever do Estado e um instrumento de emancipação popular. […] Os que mais lucram devem pagar mais impostos. Não podemos tolerar um sistema que protege os que especulam e penaliza os que trabalham. […] O Brasil não é quintal de nenhuma potência. Nosso petróleo, nossas riquezas, nosso trabalho pertencem ao povo brasileiro”.

Como se vê, texto de dramática atualidade, passados 62 anos!

Segue-se o silêncio dos anos de chumbo, rompido quando a ditadura dá os primeiros sinais de esgarçamento e decide participar do 1º de Maio de 1981 — montando, na véspera, o felizmente frustrado atentado ao pavilhão do Riocentro, onde milhares de jovens e trabalhadores participavam de show em comemoração ao Dia do Trabalho.

As décadas de 1970 e 1980 marcam a reorganização do movimento sindical, a partir de São Bernardo do Campo, devolvendo ao 1º de Maio seu caráter político. São os tempos da ascensão de Lula. Mas, já no país redemocratizado, a politização cede espaço à alienação.

Os anos 2000–2010 trazem a marca da espetacularização. O apelo já não é mais a política, o combate ideológico, a defesa do sindicalismo, as reivindicações sociais. No pódio está o “sindicalismo de resultados”; o comício e o discurso ideológico são substituídos por megashows; o sorteio de prêmios é o atrativo para novas plateias — que vão se minguando até o vazio de hoje.

Uma penca de centrais sindicais de representatividade discutível convocou uma concentração neste 1º de Maio de 2025 na Praça Campo de Bagatelle, zona norte de São Paulo, prometendo como atração shows de artistas menores e sorteios de dez carros 0 km.

Prevenido pelo fracasso do showmício do ano passado, o presidente Lula anunciou que não participaria do evento deste ano. Considerou mais prudente permanecer em Brasília (como fazia JK) e falar ao país por meio de cadeia nacional de rádio e TV. Foi um discurso bem articulado, no qual desfilou os feitos econômicos e sociais de seu governo, destacando aqueles de maior interesse para a classe trabalhadora.

Ao final, traçou dois itens de sua política trabalhista: o apoio à PEC 8/2025, da deputada Erika Hilton (PSOL/SP), que reduz a jornada de trabalho para 4 dias por semana (abolindo a jornada 6×1), e a defesa da isenção do imposto de renda para aqueles que recebem menos de R$ 5.000,00.

Já é alguma coisa.

*Roberto Amaral foi presidente do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e ministro da  Ciência e Tecnologia do governo Lula. É autor do livro História do presente – conciliação, desigualdade e desafios (Editora Expressão Popular e Books Kindle).

* Com a colaboração de Pedro Amaral

*Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Last Update: 02/05/2025