Chegou a hora da autocrítica do Partido Democrata. A derrota inconteste na Casa Branca, na Câmara e no Senado exige da agremiação que se propôs a defender as instituições norte-americanas uma nova postura diante do maior desafio de sua existência. Para muitos, a fragmentação da legenda reflete a situação do próprio país, dividido em duas metades que se odeiam. A vitória de Donald Trump agiliza um processo iniciado bem antes. A crescente insatisfação da base eleitoral não é recente e soma-se à ascensão do populismo de direita e às profundas divisões internas entre progressistas e centristas. O combo reforda a pressão para redefinir a estratégia para as eleições futuras sem abandonar as bandeiras históricas.
Por enquanto, lava-se roupa suja. Um dia após a derrota nas urnas, um dos mais respeitados líderes da esquerda progressista nos Estados Unidos, o senador independente Bernie Sanders, culpou a própria legenda pela derrocada. “Não deveria ser nenhuma grande surpresa que um partido que abandonou a classe trabalhadora descobrisse que a classe trabalhadora o abandonou. Os democratas perderam esta eleição porque ignoraram a raiva justificada da classe trabalhadora americana e se tornaram defensores de uma economia e de um sistema político manipulados”, anotou em um comunicado oficial publicado em suas redes sociais.
O colega Chris Murphy, que começou a carreira política como um democrata moderado, reconheceu a assertividade de Sanders. “Não ouvimos o suficiente. Dizemos aos eleitores o que é bom para eles. E quando progressistas como Bernie atacam agressivamente as elites que reprimem as pessoas, eles são rejeitados como populistas perigosos. Por quê? Talvez porque o verdadeiro populismo econômico seja ruim para a nossa base de alta renda”, escreveu em uma extensa defesa em um tópico na rede social X no dia 10 de novembro.
Matthew Duss, vice-presidente-executivo do Center for International Policy e conselheiro de política externa de Sanders entre 2017 e 2022, diz mais. Em entrevista a CartaCapital, Duss destaca a incapacidade dos democratas de se apresentarem de forma convincente como um partido que age em nome dos trabalhadores. “Joe Biden e então Kamala Harris essencialmente se apresentaram como defensores de instituições em que muitos, ou mesmo a maioria dos americanos, perderam a fé. Donald Trump e o Partido Republicano, mais particularmente Trump, pois ele redefiniu o partido em torno de si, apresentaram-se como críticos das instituições, que iriam remodelar e reformar. E essa foi uma mensagem vencedora.”
O professor da Universidade de Boston Thomas Whalen, Ph.D. em História Americana e com expertise na história do Partido Democrata, ressalta que os representantes da legenda precisam voltar às raízes. “Embora a redução da inflação sob Biden tenha feito tanto pelos trabalhadores e pelos norte-americanos comuns, sua operação de mensagens foi simplesmente terrível. Os democratas não sabem como falar com os comuns na rua, aqueles que estão basicamente contando seus centavos e tentando descobrir como enviar seus filhos para a faculdade e pagar o aluguel mensal. Em vez disso, eles recebem um tipo de palestra acadêmica.”
Whalen destaca que o candidato vencedor deve ser branco, jovem e duro no tema da migração. “Os americanos dirão ‘ah! Não, não somos antifeministas’ ou ‘não somos contra os negros’, mas os registros mostram o contrário. Este é um país muito racista, francamente, o que torna o feito de Obama ainda mais incrível.”
Embora os próximos anos não sejam animadores, o professor afirma que talvez seja uma boa oportunidade para os democratas se reerguerem e reconquistarem o eleitor. “Os republicanos, com todo esse projeto 2025, pretendem reduzir a Previdência Social, o Medicare e o Medicaid, programas que ajudam os americanos comuns. Isso pode irritar muitas pessoas, principalmente os eleitores mais velhos, que são os americanos que realmente votam. O fato é que a democracia está em perigo agora neste país e, honestamente, não tenho certeza se seremos capazes de sobreviver a isso.”
Duss sugere aos democratas e aos progressistas de modo geral um mergulho na reorganização interna, no estudo das experiências vencedoras fora dos Estados Unidos e na busca de alianças internacionais. “A direita tem sido muito mais agressiva na construção desses relacionamentos. A esquerda precisa conversar mais, precisa envolver-se mais com seus aliados em outros países, outras democracias ao redor do mundo e outros grupos da sociedade civil que trabalham em situações antidemocráticas.”
Publicado na edição n° 1339 de CartaCapital, em 04 de dezembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Juntar os cacos’.