Jair Bolsonaro tornou-se réu no Supremo Tribunal Federal por suposta tentativa de golpe de Estado. O que por muitos anos foi denunciado por movimentos sociais, juristas e pesquisadores como risco real à ordem democrática, hoje encontra reconhecimento formal no sistema de justiça. A denúncia aceita pelo STF o coloca no centro de uma disputa jurídica que não pode ser dissociada do debate público e político mais amplo.
Não se trata apenas de um indivíduo. O bolsonarismo, enquanto fenômeno político, é fruto de alianças diversas: militares, operadores digitais, forças religiosas e interesses econômicos. Sua sustentação nunca foi apenas nacional. Foi alimentada por redes internacionais, amplificada por algoritmos e conectada a uma constelação de lideranças conservadoras globais. Por isso, mesmo diante da judicialização, os sinais de articulação permanecem visíveis.
No dia 18 de março de 2025, Eduardo Bolsonaro anuncia sua licença parlamentar e mudança para os Estados Unidos. Em meio à crescente tensão institucional em torno do pai, a decisão revela mais do que um afastamento pessoal: projeta a continuidade das relações da extrema-direita brasileira com seus pares internacionais. Ao se retirar do cenário político formal, Eduardo também sinaliza que a disputa segue viva — ainda que agora, em parte, transnacionalizada.
Poucos dias depois, o STF acolhe a denúncia da PGR, e Jair Bolsonaro é oficialmente incluído como réu. A repercussão ultrapassa os muros do Supremo ou da imprensa nacional. Observadores internacionais passam a acompanhar o caso com atenção redobrada, considerando o Brasil como mais um ponto de inflexão nas lutas contra a ascensão global do autoritarismo.
Em meio a esse contexto, Donald Trump menciona o Brasil em discurso de campanha, citando a região da 25 de Março como símbolo de pirataria e desordem. A fala, ainda que aparentemente anedótica, carrega sinais. Ao associar o país à informalidade e à ilegalidade, Trump mobiliza um imaginário que alimenta a ideia de que a democracia no Sul global é frágil, desorganizada, suscetível a “correções” — um argumento frequentemente instrumentalizado por grupos que desprezam o Estado de Direito em nome de promessas morais e securitárias.
Não por acaso, dias depois, em 5 de abril, um relatório oficial dos EUA reforça esse enquadramento ao citar formalmente o 25 de Março como polo de pirataria. O gesto, ainda que revestido de tecnicismo diplomático, projeta uma narrativa externa sobre o Brasil em um momento politicamente sensível, favorecendo leituras que dialogam com o discurso da desordem e da necessidade de “restauração”.
No Brasil, a reação de Jair Bolsonaro também ganha contornos estratégicos. Em 7 de abril, durante um evento em defesa da anistia aos envolvidos no 8 de janeiro, ele retoma os holofotes ao ironizar as condenações, tratando os acusados como personagens quase caricatos — os “pipoca e sorvete”. Ao fazer isso, reposiciona-se como vítima, não como agente. Ensaiando mais uma vez a retórica do injustiçado, ele convoca sua base emocionalmente, não juridicamente.
Por fim, em 13 de abril, Bolsonaro é internado, a comoção gerada em torno de seu estado de saúde reativa a mobilização afetiva de seus apoiadores. Mais do que uma notícia médica, o episódio é interpretado como novo capítulo de uma dramaturgia já conhecida: o líder que sofre, mas resiste.
A sequência de eventos compõe um roteiro conhecido de quem acompanha a política da extrema-direita: Bolsonaro vira réu → Eduardo se retira → Trump lança insinuações → relatório reforça o estigma → Bolsonaro reaparece como mártir → o corpo físico encena vulnerabilidade.
Esse encadeamento não deve ser lido como coincidência, mas como sinal de um modus operandi. Uma estratégia em que a fronteira entre a realidade institucional e o espetáculo simbólico se dissolve para manter vivo o capital político — mesmo em meio ao descrédito jurídico.
É por isso que o processo que se desenrola hoje no Supremo não é apenas um julgamento de Jair Bolsonaro. É uma disputa sobre a memória, sobre os limites do aceitável e sobre a responsabilidade que devemos exigir de líderes que atentam contra o próprio pacto democrático.
O que vivemos não é apenas um ciclo de punição. É uma tentativa — ainda que tardia — de nomear as consequências. E se há algo que aprendemos com a história, é que autoritarismos não se desmontam sozinhos: exigem nome, data, prova e enfrentamento.
Não há mágica. Há método. E justiça, quando há coragem, também pode ser um deles.