Retratos da pobreza na superpotência mundial
por Tatiana Carlotti / F21
Enviada especial do Fórum 21 e da Fatoflix aos Estados Unidos
De Nova York
Apesar de viverem na economia mais rica do planeta, com um PIB batendo os 27,36 trilhões de dólares, mais de 38 milhões de pessoas nos Estados Unidos não conseguem suprir as suas necessidades básicas. E cerca de 108 milhões estão se equilibrando na corda bamba entre a segurança e a pobreza, como mostra “Poverty by America” (2023), o mais recente estudo de Matthew Desmond, professor de Sociologia da Universidade de Princeton.
Vencedor em 2016 do Prêmio Pulitzer por “Evicted: poverty and profit in the American City”, neste livro, Desmond traz um panorama da pobreza, não apenas com os dados, mas com histórias que dimensionam os dramas; e mostra como o poder público lida com a questão, apontando soluções.
Atualmente, “quase um em cada nove americanos, incluindo uma em cada oito crianças, vive na pobreza”, com consequências traumáticas que capturam futuros num ciclo de violências que começa cedo. Mais de 1 milhão de crianças matriculadas nas escolas públicas da potência mundial vivem desabrigadas em motéis, carros, prédios abandonados.
O destino de (quase) sete em cada dez meninos negros, que não terminaram o ensino secundário é o de passar “pelo menos uma parte da vida na cadeia, até completar trinta e poucos anos”. E o sistema de Justiça é parte da indústria da miséria. Todos os dias, afirma Desmond, quase 2 milhões de pessoas “sentam-se em nossas prisões e cadeias” e 3,7 milhões estão em liberdade condicional, sendo que “a esmagadora maioria dos atuais e antigos prisioneiros da América são muito pobres”.
Muitas vezes, as agências de justiça criminal cobram multas pesadas dessas pessoas, emitindo mandatos e mobilizando cobradores privados para obrigá-las a pagar pela acusação e pelo seu encarceramento. “Muitas pessoas definham na prisão não porque foram condenadas por um crime, mas porque deixaram de pagar [essas cobranças] ou por não conseguirem pagar a fiança”, detalha.
“Poverty by America” (2023), o mais recente estudo de Matthew Desmond, professor de Sociologia da Universidade de Princeton.
OS RECURSOS ABUNDAM
Desmond traz em dados um retrato nada usual dos Estados Unidos, mas perceptível nas ruas de Nova York, Filadélfia ou Washington D.C., onde percorri em busca da percepção das pessoas sobre as eleições que deram à personagem caricata de Donald Trump, que flerta abertamente com os supremacistas e fez de sua campanha um libelo anti-imigratório, o direito de retornar à Casa Branca.
Um total de 76.7 milhões de pessoas embarcaram no slogan do MAGA (Make American Great Again), acreditando em uma melhora na economia e criticando a inflação (já contida pelo governo Biden) e a aceleração do aumento do custo de vida, em 2021 e 2022.
Como explica o economista Marcello Averbug, que vive a realidade do país há mais de trinta anos, “esse incremento da inflação resultou de vários fatores, entre eles os gastos públicos realizados para combater os efeitos econômicos da pandemia. Mas, rapidamente, o governo Biden e o FED (Banco Central Americano) implementaram políticas que permitiram, já em 2023, acentuado declínio da taxa de inflação”.
“Apesar desse declínio admirável, a população continuou descontente pois prevaleceu a ilusão de que deveria haver um retorno dos preços aos antigos níveis, o que é historicamente impossível. Esse descontentamento justifica-se no caso dos assalariados cujas remunerações não acompanharam o ritmo inflacionário”, complementa.
Observando um intervalo de vinte anos, entre 2000 e 2022, Desmond aponta que “numa cidade americana média, o custo do combustível e dos serviços públicos aumentou 115%”, gerando uma situação inusitada na qual os pobres chegam a acessar bens baratos e produzidos em massa, como celulares e fornos elétricos, mas não conseguem pagar pela conta de luz para usá-los.
“Há cada vez mais provas de que a América abriga uma camada dura de privação, uma espécie de pobreza extrema que se pensava existir somente em lugares distantes de pés descalços e barrigas inchadas”, aponta o sociólogo, que descreve o comportamento da pobreza nos país ao longo do último século como uma “linha que se assemelha a colinas suavemente onduladas”.
O gráfico abaixo da população pobre nos Estados Unidos, divulgado pelo Departamento do Censo em setembro deste ano, com dados relativos a 2023, confirma as colinas onduladas de Desmond.
Duas taxas medem a pobreza no país, uma é a taxa oficial (gráfico acima), que indica uma redução da pobreza em 2023, chegando a 11,1% da população, ou 36,8 milhões de pessoas. A título de comparação, em 1970, o índice batia os 12,6% da população; em 1990, chegou aos 13,5%; em 2010, subiu para 15,1%; em 2019, 10,1%.
A outra taxa é a Medida Suplementar de Pobreza (SPM), que engloba programas e índices para além dos aspectos extritamente monetários. Segundo esta taxa, a pobreza não diminuiu, mas aumentou 0,5%, atingindo 12,9% da população, ou seja, 41 milhões de pessoas:
Segundo Averbug, autor de Escritos Itinerantes: Economia e Política (2024), que atuou em Washington, no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), “um dos fatores básicos que explicam o comportamento da economia e da sociedade americanas é o aumento da concentração social de renda. Mesmo havendo diminuição dos índices de pobreza, a diferença entre os níveis de renda das camadas mais pobres da população e o das mais favorecidas vem aumentando há várias décadas”.
“Esse processo iniciou-se nos anos 80, no governo Reagan, a partir do qual a taxa de incremento da remuneração ao trabalho vem sendo inferior ao incremento de produtividade da economia. Como consequência desse processo, o percentual ocupado pela massa salarial no PIB vem encolhendo, conforme indica o Bureau of Economic Analysis, o equivalente ao Ministério da Indústria”, explica.
Segundo o FED, no final de 2022, o valor das posses do 0,1% mais rico dos Estados Unidos somava US$ 17,6 trilhões, quatro vezes mais do que a riqueza dos 50% mais pobres, com US$ 4,16 trilhões. Se pegarmos os 10% mais ricos, o número salta para US$ 95,4 trilhões, duas vezes mais do que 90% da população dos Estados Unidos, cuja soma das posses totalizava US$ 44,47 trilhões.
Uma concentração de riqueza que, além de nababesca, tem em grande parte como seu mecanismo de reprodução o cassino financeiro, conforme destrincha o economista Ladislau Dowbor em “A Era do Capital Improdutivo” (2019). É a especulação financeira, e não a produção de bens do capitalismo tradicional, que permitia a geração de empregos e o aumento da renda da população, que vem promovendo a imensa disparidade de renda.
Uma especulação sem controle e improdutiva, cuja elite, após a crise de 2008 e depois de afundar economias no mundo inteiro, lançando milhões de famílias na miséria, acabou sendo subsidiada não pelo “laissez-faire” do mercado, mas pelo governo dos Estados Unidos da América.
Residência nos subúrbios ricos de Washigton D.C.
Este é o mundo de Trump e dos megabilionários que a ele se juntam para governar a maior potência mundial do planeta nos próximos quatro anos, após uma campanha eleitoral ancorada na culpabilização dos imigrantes pelo aumento da pobreza e da violência na América.
No time indicado pelo republicano até agora o que se vê é uma imensa leva de extremistas e negacionistas. Não vou me estender um a um, mas cliquem nos nomes e para conhecer as biografias: Susie Wiles (Chefe de Gabinete), Marco Rubio (Secretário de Estado), Robert Kennedy Jr. (Secretário de Saúde e Serviços Humanos), Tulsi Gabbard (Diretora da Inteligência Nacional), Pete Hegseth (Secretário de Defesa), os megamilionários Elon Musk e Vivek Ramaswamy indicados para o Departamento de Eficiência Governamental (DOGE), Matt Gaetz (Procurador-Geral) e Kristi Noem (Secretária da Segurança Interna).
OS IMIGRANTES
Trabalhadores no setor da construção em Manhattan, N.Y.
O discurso anti-imigratório cai como uma luva e ganha adesão em um país que tem mais imigrantes do que qualquer outra nação do planeta. Segundo Desmond, “em 1960, uma em cada vinte pessoas na América tinha nascido em outro país. Hoje, é uma em cada oito pessoas”. Quase a metade dos imigrantes nos Estados Unidos se concentram em três estados: Califórnia, Texas e Flórida.
Em seu estudo, o sociólogo observa se o ingresso de imigrantes provocou algum aumento da pobreza ou a perda de vagas de trabalho para os nativos nesses três estados. E a resposta é um categórico não. “Os estados que acolheram o maior número de imigrantes ao longo do último meio século não ficaram mais pobres. No caso do Texas e da Flórida, eles se tornaram mais prósperos”.
Desmond inclusive lembra que “os imigrantes têm algumas das taxas mais elevadas de mobilidade econômica do país”, em particular, no que diz respeito a seus filhos. “Quantos de nós conhecemos engenheiros de software, médicos e advogados que são filhos de agricultores migrantes, lavadores de prato (dishwashers) ou de roupas (laundress)?” questiona.
Quanto ao impacto no trabalho dos nativos, ele explica que “os imigrantes competem principalmente com outros imigrantes, o que significa que os trabalhadores mais ameaçados pelos recém-chegados são os que estão a mais tempo no país. Para muitos americanos, os salários estagnaram, mas os imigrantes não são os culpados”, afirma.
Desmond também comenta a redução da população não-documentada nos Estados Unidos. “Os políticos que se preocupam com a ´crise fronteiriça´ sabem muito bem que a população indocumentada atingiu o pico há mais de quinze anos, em 2007”; e que “os empregadores não responderam à diminuição da força de trabalho indocumentada contratando trabalhadores nativos com salários competitivos, mas automatizando os seus empregos, contratando outros imigrantes ou fechando as suas lojas”.
Estigmatizados, os imigrantes nos Estados Unidos, definitivamente, não contam com uma vida de plenos direitos trabalhistas, mesmo os que estão pagando todos os impostos exigidos pelo governo americano.
Conversei com vários deles nas últimas semanas e as condições de trabalho são duríssimas, inclusive, quando os empregadores também são estrangeiros, e reproduzem na “América” situações abusivas naturalizadas em seus países de origem, com jornadas de trabalho de “seis dias da semana, em turnos que ultrapassam (e muito) as oito horas”, na contramão das conquistas trabalhistas que conhecemos.
E as pessoas aceitam porque estão vulneráveis e se arriscam, fazem acordos e lutam para sair da cadeia de violências que, também, cria traumas.
BENEFÍCIOS EXISTEM MAS NÃO CHEGAM NA BASE
Desabrigados no aeroporto de Newark em NY.
Façamos justiça ao Congresso dos Estados Unidos durante os anos Reagan. Apesar do grande propagandista do “fundamentalismo de mercado”, responsável por abrir as condições para a extrema concentração de renda dos dias atuais, “expandido o poder corporativo, reduzido massivamente os impostos sobre os ricos e os gastos em algumas iniciativas antipobreza”, Reagan foi impedido de “fazer cortes em grande escala e de longo prazo em muitos dos programas que compõem o estado de bem-estar social americano”, aponta Desmond.
Durante seu governo, “o gasto com o combate à pobreza não diminuiu”, porém com sua saída da Casa Branca, ele “cresceu significativamente”. Ao analisar os treze maiores programas de recursos testados no país, com foco no auxílio à população de baixa renda, desde os anos 1980, o professor de Princeton aponta que os gastos subiram de “US$ 1.015 dólares por pessoa no ano em que Reagan foi eleito presidente para US$ 3.419 dólares por pessoa por ano durante o governo Trump. Um aumento de 238%”.
O problema, portanto, não está no volume dos recursos federais. Ao longo dos anos, eles vêm se mantendo, mas sim no fato de que a quantidade razoável da ajuda governamental nunca chega, efetivamente, até as pessoas. E, neste sentido, o neoliberalismo de Bill Clinton não encontrou o mesmo Congresso de Reagan.
Ao comentar as consequências de uma reforma da assistência social promovida pelo democrata nos anos 90, Desmond aponta que até 1996, os recursos destinados aos mais pobres eram geridos por um programa de Ajuda a Famílias com Crianças (Aid to Families with Dependent Children) a partir de fundos que forneciam assistência em dinheiro às pessoas.
“Quando o presidente Bill Clinton reformou a segurança social em 1996, substituindo o antigo modelo pela Assistência Temporária para Famílias Necessitadas (TANF), ele transformou o antigo programa numa subvenção em blocos que deu aos estados uma margem de manobra considerável para decidirem como distribuir este dinheiro”, detalha.
Resultado: em 2020, “para cada dólar orçado para o TANF, as famílias pobres receberam diretamente apenas 22 centavos”. O dinheiro desde então vem sendo desviado de seu fim original, conforme os acordos e pressões em cada estado, para atividades que, na prática, nada tem a ver com a redução da pobreza. “Dos 31,6 bilhões de dólares em financiamento da assistência social, apenas 7,1 bilhões chegaram ao seu destino.
“Entre 1999 e 2016, Oklahoma gastou mais de US$ 70 milhões em fundos TANF na Iniciativa de Casamento de Oklahoma, fornecendo serviços de aconselhamento e organizando workshops abertos a todos os cidadãos do estado, pobres ou não. O Arizona usou dólares da assistência social para pagar educação sexual baseada apenas na abstinência. A Pensilvânia desviou fundos do TANF para centros antiaborto. O Maine usou o dinheiro para apoiar um acampamento de verão de cristãos”, alerta Desmond.
Soma-se a isso o fato de os estados não serem obrigados a gastar todos os seus dólares TANF a cada ano. “E muitos não o fazem, transferindo o dinheiro não utilizado para o ano seguinte. Em 2020, os estados tinham em sua posse quase 6 bilhões de dólares em fundos de assistência social não gastos”, complementa.
Não espanta, portanto, que entre 1995 e 2018, o número de famílias que requereram o Programa de Assistência Nutricional Suplementar (vale-refeição) tenha galgado de “289.000 para 1,2 milhão, o equivalente a um em cada cinquenta americanos”.
Esta não é a única causa, Desmond cita outras, mas ela exemplifica as rachaduras da arquitetura do poder político na superpotência.
“NÃO, AINDA NÃO É POSSÍVEL”
Panorâmica da Union Station em D.C.
Em Washington D.C., onde os faróis correm mais ligeiros que o normal – o contraste entre os super-ricos e os miseráveis é acachapante. São deslumbrantes as residências pelos subúrbios da capital do país. É literalmente imperial a arquitetura de seus prédios públicos e onipotentes as praças, avenidas e as ruas em Dupond Circle. E o que dizer das coleções em seus museus, todos gratuitos e subsidiados pela elite com a devida redução dos impostos?
Em meio a tanta riqueza, a pobreza ecoa mais alto. Foi ali que encontrei, após cinco semanas questionando a não presença delas nas ruas, a primeira criança pedindo dinheiro, um menino lindo de olhos tristes, ao lado das máquinas que vendem os bilhetes de metrô na Union Station D.C. Mais adiante, na mesma estação, encontrei Olaf sentado em uma cadeira de rodas, com um cobertor cobrindo seus joelhos, ao lado de um caixa eletrônico e um letreiro estampado “Bank of America”.
Aos 64 anos, vivendo nas ruas em D.C., ele se abriga e pede dinheiro nas proximidades do prédio, onde além da temperatura convidativa, soam os acordes de Vivaldi, alternados com os hits pop da cultura americana. Tem dias que Olaf se alimenta bem, outros não, tudo depende do humor dos quem trafegam pelos trens, ônibus e metrô que desembocam neste ponto central da cidade.
Olaf recebe ajuda federal, tem acesso e já foi atendido pelo sistema de saúde público e embora não tenha contado sobre o problema nas pernas, revelou ser residente de Washington, onde vivia em South West, uma região que me recomendou não ir sozinha à noite, mas que “de dia tudo bem”, com a filha até 2009. Naquele ano, com a crise arrebentando o país e enriquecendo ainda mais os que a geraram, a filha de Olaff perdeu o emprego e se mudou de cidade. Desde então, ele está nas ruas.
Embora tenha contado pouca coisa sobre a própria vida, ele se animou em espinafrar Donald Trump, inclusive, foi o único, entre as várias pessoas com quem conversei, que me contou do terror durante a pandemia e do comportamento “de maluco” de Trump. “É um supremacista”, “quer matar o povo negro”, “os americanos enlouqueceram”, analisou.
Olaf me disse que sentiu que ia morrer durante a pandemia. Pegou Covid e foi parar nos hospitais públicos. Ele considera Joe Biden um grande presidente por ter “trazido a vacina para a América” e ajudado as pessoas a sobreviverem naquele período. Sua fala encontra os dados de Desmond. Somente em 2021, primeiro ano de Biden, foram injetados US$ 521 bilhões no Medicaid, o programa voltado à cobertura dos gastos de saúde da população de baixa renda.
As medidas do governo tiveram forte impacto na redução da pobreza. Desmond destaca que apesar da perda de milhões de empregos, por conta do auxílio do governo durante a pandemia, houve uma redução de 16 milhões de pessoas da pobreza em comparação com 2018.
“A pobreza caiu para todos os grupos raciais e étnicos. Caiu para as pessoas que viviam nas cidades e para as que viviam nas áreas rurais. Caiu para os jovens e os idosos e ainda mais para as crianças. A ação rápida do governo não impediu apenas o desastre econômico; mas ajudou a reduzir a pobreza infantil em mais de metade”, destaca.
Sobre Kamala Harris, Olaf afirmou que era uma candidata muito fraca contra Trump e lamentou Biden não ter continuado no páreo.
Aproveitei para alfinetar: “É mulher”.
Ao que, ligeiro, ele me respondeu:
“É uma mulher negra. Não, ainda não é possível”.
Tatiana Carlotti – Repórter do Fórum 21, com passagem por Carta Maior (2014-2021) e Blog Zé Dirceu (2006-2013). Tem doutorado em Semiótica (USP) e mestrado em Crítica Literária (PUC-SP).
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