O olhar sobre a Amazônia, a partir dos territórios e tradições dos povos que nela habitam, nos provoca um olhar que ultrapassa as fronteiras definidas pelos acordos políticos. São oito países, muitas Amazônias, mas uma luta única: a autonomia dos territórios. O território, nesse contexto, vai muito além de um pedaço de terra, por maior que seja. Essa foi uma das principais reflexões da 11ª edição do Fórum Social Pan-Amazônico (Fospa), que reuniu, entre os dias 12 e 15 de junho, milhares de ativistas, pesquisadores, jornalistas, acadêmicos, juventudes e representantes de movimentos sociais nas cidades de Rurrenabaque e San Buenaventura, na Amazônia boliviana.
Com a COP sendo realizada pela primeira vez na Amazônia brasileira, longe dos países produtores de petróleo que frequentemente recebem o evento, uma série de encontros tenta discutir ‘o que a Amazônia precisa’, ‘como desenvolvê-la de forma sustentável e responsável” e “que tipo de economia deve se estabelecer’. Realizado pouco antes da tentativa frustrada de golpe de estado na Bolívia, o Fórum Social Pan-amazônico foi uma vitória da combativa população boliviana. Politicamente, o país é uma inspiração para a democracia na América Latina, o que fomentou uma forte participação coletiva no encontro.
No encontro, pensado e produzido pela sociedade civil, foram criados espaços para troca de experiências e de proposições entre pessoas cidadãs dos oito países latinoamericanos onde a floresta amazônica se encontra. As discussões fundamentam-se em quatro grandes eixos: povos e populações amazônicas; Mãe Terra; alternativas a atividades predatórias; e resistência das mulheres. Além disso, de forma transversal, foram criados grupos paralelos para debater juventudes, educação, comunicação e cultura.
As discussões mostram que as demandas das populações amazônicas, mesmo com as especificidades de cada território, são uníssonas. Seja contra a exploração de potássio no Amazonas (Brasil), a extração ilegal de ouro no Peru ou o lítio na Bolívia, as vozes amazônicas se unem contra toda e qualquer forma de mineração, que contamina os rios, os alimentos e as vidas. Denunciamos o avanço predatório de falsas soluções e grandes empreendimentos de “desenvolvimento” concebidos a partir do norte global, baseados em uma lógica de compensação e mercantilização da natureza, que assumem um papel colonial, capitalista, autoritário, patriarcal e só beneficiam economicamente os Estados e as corporações historicamente responsáveis pela crise climática global.
O avanço de megaprojetos de crédito de carbono ou de transição energética sem a devida consulta aos territórios, prerrogativa da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), pode ser freado enquanto ainda há tempo. Por outro lado, como mostra a pesquisa Vozes Silenciadas – Energias Limpas, do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação, a mídia silencia diante de denúncias de lideranças e pesquisadores, defendendo os interesses econômico-mercadológicos. Em paralelo à invisibilidade de um debate complexo e mais aprofundado sobre o impacto da chegada das empresas de energias nas comunidades, ganham espaço narrativas acríticas em defesa das chamadas “energias renováveis”. A narrativa sedutora, salvacionista e superficial aponta os grandes empreendimentos de energia eólica e solar como solução para a crise ambiental atravessada pelo planeta.
No Fospa, as populações amazônicas ali representadas destacaram o compromisso de liderar e promover alternativas reais à crise climática. Isso passa por um processo em que as comunidades sejam ouvidas e respeitadas, com suas formas de comunicação fortalecidas para que suas narrativas sejam pautadas em espaços de mídia popular.
A desinformação também desmata a Amazônia
Combater a desinformação, no contexto amazônida, é uma questão de autonomia. Muito mais que uma disputa de narrativas, é um resgate da história e da memória dos povos, que restabelece um papel de autoridade e conhecimento que apenas quem se relaciona de forma íntima com um território possui.
Basta olhar para o exemplo de Belo Monte. Pesquisas mostram como todo um aparato de informações distorcidas foi utilizado pelas forças políticas e econômicas para justificar a construção de uma hidrelétrica no rio Xingu, mesmo com forte resistência dos movimentos sociais. Hoje, a cidade de Altamira (PA), onde está instalada a Usina, é uma das mais violentas do país, cenário de vários conflitos e de uma população empobrecida, vítima do subemprego.
Na primeira fase da pesquisa Amazônia Livre de Fake, realizada em 2022, mapeamos blogs e sites de notícias com cobertura sobre a Amazônia Legal brasileira. Durante o período pesquisado, pôde-se observar o apagamento do debate socioambiental, uma vez que a quantidade de notícias com pautas ambientais nos veículos analisados foi inferior às outras temáticas analisadas. Além disso, a maior parte dos textos estudados eram reproduções de assessorias de imprensa, agências públicas ou sites considerados desinformativos, o que também evidencia o poder concedido às instituições governamentais em detrimento dos movimentos sociais.
Sob o domínio das big techs, o debate sobre temas que afetam diretamente os territórios nas plataformas digitais frequentemente silenciam as vozes locais. Essa foi uma das conclusões observadas não somente no Fospa, como também no levantamento da segunda fase da pesquisa Amazônia Livre de Fake, com o recorte voltado a difusores de desinformação que ocupam cargos políticos. Um exemplo é o senador Zequinha Marinho (Podemos/PA), porta-voz da bancada ruralista e principal investidor em impulsionamentos nas plataformas digitais do chamado greenwashing – que se caracteriza pelo uso de narrativas que ocultam práticas antiecológicas ou negam seus impactos negativos.
Nesses anúncios, os supostos benefícios do agronegócio são explorados como argumentos para defender a flexibilização da regularização fundiária na Amazônia e influenciar o debate sobre o mercado de carbono. Os impactos socioambientais de atividades extrativistas em larga escala, de megaprojetos e de práticas ligadas ao agronegócio são frequentemente minimizados ou negados e, em alguns casos, essas atividades são defendidas até mesmo como benéficas ao meio ambiente.
A diversidade de pessoas e personalidades faz do Fospa um evento único, pois são amazônidas que vivem as realidades do campo, da floresta e das cidades periféricas que constroem o encontro. Essa diversidade fortalece o encontro de realidades múltiplas, porém similares, à medida que as culturas se espelham como elemento de luta. Estudos apontam que a Amazônia está cada vez mais perto de um ponto de não retorno, de cruzar uma fronteira perigosa que pode transformar a maior floresta tropical do mundo em um deserto. A humanidade está caminhando para atingir o chamado ‘limite do perigo’, estabelecido pelo Acordo de Paris e que representa o aquecimento de 2 °C na temperatura média do planeta em comparação ao período pré-industrial.
A construção do evento parte das urgências e emergências de territórios atingidos e de pessoas resistentes. O resultado de todos os debates foram reunidos em uma carta manifesto com as principais reivindicações extraídas do encontro, que pode ser conferida no site do evento. O Fospa aborda questões que muitos outros eventos evitam, nomeando e denunciando empresas que devastam os territórios, exigindo algo que não deveria ser necessário pedir: parem de nos matar, parem de invadir nossos territórios.