Responda rápido: quanto é (8×7)/2?
por Roberta Laredo
Se você pegou a calculadora para fazer essa continha, vem comigo.
No filme Harry e Sally – Feitos um para o outro, comédia romântica do final dos anos 80, Sally, interpretada pela doce Meg Ryan, ao dividir a conta do restaurante com Harry, o carismático ator Billy Cristal, usa duas ferramentas pré-históricas para fazer a divisão de contas no bar: um papel e um lápis. Organizada e precisa, Sally soma, multiplica e divide os valores dos pratos e das sobremesas, sem esquecer da gorjeta. Um clássico do rachar de contas no cinema.
O que os mais novos não devem saber é que era realmente assim que fazíamos contas simples: com lápis e papel. Alguns faziam de cabeça mesmo; afinal, quinze e cinquenta dividido por dois sempre foi 7,75. Ninguém conferia porque todo mundo sabia – ou confiava. Calculadora, só para contas mais complexas ou muito longas, e na escola ou na faculdade, jamais.
Na faculdade de engenharia, que cursei do início ao quase fim dos anos 90, surgiram as calculadoras científicas que nos davam integrais, derivadas e resolviam funções complexas em segundos. Resistência dos professores para seu uso: nenhuma. A grande questão ali era ter dinheiro para adquirir a joia que era a HP 48X, cobiçada, inclusive, por alguns professores. Ou seja, enquanto a elite resolvia sua prova em quinze minutos, os menos abastados gastavam a hora e meia fazendo contas que poderiam ser terceirizadas para a máquina sem nenhum prejuízo moral quanto ao esforço do aluno. O importante era o raciocínio e não as contas, diziam todos.
Mais tarde, quase no final do curso, uma “bomba” cai no nosso colo: computadores, que antes facilitavam nossa vida com a digitação rápida e clara de trabalhos e relatórios, começam a menosprezar nossos talentos de exímios manipuladores de canetas nanquim, normógrafos, réguas e esquadros e aparecem com um programa chamado AutoCAD. Ninguém mais queria carregar a régua T de um metro para cima e para baixo e a promessa não ficava só para os alunos: as faculdades não precisariam ter espaço para dispor 50 mesas de desenhos enormes; agora, bastava um computador com o programa certo, de preferência cada aluno tendo o seu na sua casa, para não gerar custo no orçamento da universidade. Foi decretado o fim do desenho manual: sai o desenho com milimétricas imprecisões, que levavam dias, semanas, meses para serem concluídos, entra a tecnologia que entrega um desenho limpo e preciso em poucas horas ou dias. Ninguém questionou. Mais uma vez, quem podia ter um computador saía na frente e entregava a demanda no prazo do cliente mais exigente – fazendo as infinitas alterações sem reclamar. A máquina substituía o homem e acabava com o trabalho do desenhista técnico em uns poucos cliques e, mais uma vez, sem nenhuma crise moral ou nostalgia do trabalho manual.
Eis que, no início dos anos 2000, o que ninguém julgava possível, aconteceu. A escrita começa a ser substituída pela máquina. A inteligência artificial está escrevendo por nós. Um prompt bem feito e, voilà, tenho uma legenda para meu post do Instagram ou a redação que a professora pediu para a semana que vem prontinha na minha nuvem. Professores e policiais do “jeito certo” de escrever saem bradando contra a escrita feita pela máquina. Afinal, tudo bem terceirizar as minhas contas, meus desenhos, minha organização ou meu raciocínio lógico para a máquina, mas minha escrita, jamais. Os detratores da IA para a escrita dirão que, quando a pessoa deixa de escrever, vai perdendo a capacidade de se expressar. Mas o que acontece quando ela deixa de somar, dividir, subtrair? Ou será que a implicância agora acontece porque todo mundo pode fazer a mesma coisa? No lugar do elitismo da calculadora científica, agora temos a (quase) democratização da escrita por IA.
Pouca gente, no entanto, parece se importar com a razão de delegarmos à máquina tantas funções que nós próprios somos capazes de assumir. A primeira explicação é que é mais fácil dividir porções e drinks na mesa do bar, principalmente depois de algumas taças; afinal, quem tem tempo de ficar pensando na tabuada quando se tem tanta coisa para fazer? Tudo passa a ser uma questão de tempo e eficiência. Fazer um desenho no AutoCAD, uma planilha no Excel ou um texto no ChatGPT é a única alternativa para lidar com todas as tarefas cotidianas: cuidar da alimentação, fazer academia, se locomover na cidade, ler os textos da faculdade, além, é claro, de passar horas no trabalho só é possível com as ferramentas digitais. Isso quer dizer que, para dar conta dessas demandas, tenho que delegar outras. Normal. O problema é que estamos delegando justamente aquelas que fazem a gente usar a cabeça – aquilo que nos torna humanos. Ou seja, estamos em um sistema que não nos dá tempo para pensar, criar, refletir e produzir no tempo humano. Deixamos para a máquina fazer o melhor que temos em nós, achar a solução para um problema, criar uma história, escrever um artigo, para dar espaço para o que nos aprisiona, nos limita. Deixemos de culpar a ferramenta e olhemos para o sistema.
Harry e Sally passeiam no parque, vão a livrarias, tomam café, conversam e sempre têm tempo de dividir a conta na ponta do lápis. Têm um tempo que você não tem. Mas quem te obriga a passar duas horas no trânsito, duas na academia, duas no consultório médico, duas no petshop quase todo dia? Garanto que não é o ChatGPT.
P.S.: Não achei que este texto ficou bom; poderia ter pedido para a IA melhorá-lo dando um comando para que ele colocasse o toque pessoal de uma pessoa assim ou assado. Mas não quis, a IA gasta milhares de litros d’água para escrever um pequeno texto – foi ela mesma quem me disse isso quando perguntei. Mas essa já é uma outra história.
Roberta Laredo, formada em engenharia civil, com mestrado em arquitetura e urbanismo, fez graduação em letras português-francês na USP e, atualmente, é professora de francês e mestranda no PPG-LETRA da FFLCH.
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