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Em um trecho pouco lembrado de “Assim Falou Zaratustra”, Friedrich Nietzsche apresenta um personagem curioso: um pregador da virtude, famoso por ensinar como se deve dormir. Jovens se reúnem diante dele para ouvir máximas simples e diretas. “Respeito e pudor ante o sono!”, diz. “Mesmo o ladrão tem pudor diante dele”.
O tom quase irônico do filósofo ganha força quando o sábio sugere que dormir bem exige esforço. “Não é arte pequena dormir: requer passar o dia inteiro acordado. Dez vezes é preciso superar-se durante o dia… dez vezes é preciso reconciliar-te contigo mesmo… dez verdades tens de achar durante o dia… dez vezes tens de rir e ser jovial.” No total, quarenta pensamentos. Com eles, o sono, “o não chamado, o senhor das virtudes”, chega sozinho.
A relação entre sono e virtude segue com uma provocação clara à moral cristã. “Darei falso testemunho? Cometerei adultério? Cobiçarei a criada do meu próximo? Tudo isso combinaria mal com o bom sono”, pergunta o pregador. Nietzsche ironiza os mandamentos bíblicos ao tratá-los não como princípios sagrados, mas como obstáculos práticos para uma boa noite de sono.
Uma consciência pesada perturba o descanso, algo que a medicina moderna confirma. Nisso, tanto a ciência quanto Nietzsche talvez concordem. Ele sugere que, para dormir bem, é preciso viver bem — com leveza, conciliação e alguma dose de honestidade consigo mesmo.

Hoje, porém, esse ideal parece distante. Um estudo internacional conduzido pela ResMed, com mais de 20 mil pessoas em 12 países, mostrou que todos dormem, em média, uma hora a menos do que consideram necessário. No Brasil, a média de sono é de 6h45 por noite — abaixo das 7h30 apontadas por especialistas como o mínimo para descanso adequado. Entre os brasileiros entrevistados, 64% afirmaram não dormir o suficiente durante a semana.
Nos Estados Unidos, a situação também é preocupante. A pesquisa “State of Sleep in America 2024” revelou que apenas 26% dos adultos conseguem dormir 8 horas por noite. Outros 53% dormem entre 6 e 7 horas, enquanto 20% relatam dormir 5 horas ou menos. Esses índices refletem uma crise global do sono.
A privação crônica — dormir menos de seis horas por dia — aumenta o risco de infarto, hipertensão, obesidade, diabetes tipo 2 e transtornos de humor. Um levantamento publicado na JAMA Network Open, com base em dados da Vanderbilt University, indicou que padrões de sono fragmentado ou inferiores a seis horas diárias elevam em até 29% o risco de mortalidade. Segundo a Harvard Medical School, pessoas com menos de cinco horas de sono apresentam tempo de reação comparável ao de indivíduos alcoolizados.
Acredita-se que a falta de sono prejudique a saúde mental porque impede o cérebro de processar as memórias recentes e organizar as antigas, prendendo a pessoa num ciclo de pensamentos negativos e repetitivos. Nietzsche indica um caminho diferente: antes de dormir, é preciso revisitar o dia com calma, questionar as próprias ações, reconciliar-se consigo mesmo e lembrar das “dez superações”, “dez reconciliações” e “dez verdades”.
Esse exercício ajuda a silenciar as preocupações e até as virtudes que continuam ativas, abrindo espaço para que o sono chegue tranquilo. Para ele, o segredo está em acolher os pensamentos que acalmam o coração em vez daqueles que o perturbam.
Nietzsche percebeu, com antecedência, o que a ciência atual descreve com gráficos e exames. O pregador da virtude imaginado por ele não fazia exigências inalcançáveis. Ele sugeria hábitos regulares e um pouco de autocrítica. No fim do dia, perguntava-se pacientemente: “Quais foram, afinal, tuas dez superações? E quais foram as dez conciliações e as dez verdades, e as dez risadas com que se regalou meu coração?” Só então o sono vinha. “O sono bate em meus olhos: eles ficam pesados. O sono toca em minha boca: ela fica aberta.”
Zaratustra ouve tudo em silêncio e, depois, sorri por dentro. “Um tolo me parece este sábio, com seus quarenta pensamentos: mas creio que ele entende de dormir”. A sátira de Nietzsche é contra a vida sem esforço, sem enfrentamento. O sono, para ele, é consequência. E não adianta chamá-lo à força: ele só vem quando o dia foi digno de esquecimento.