Respeitar a autodeterminação do povo venezuelano

por Francisco Celso Calmon

O Lula costumava dizer que, quando uma mentira é mantida, faz com que continuem havendo mentiras para sustentar a primeira.

Analogamente, eu diria que, após o erro que a diplomacia brasileira cometeu em relação à Venezuela, e que o Lula sustentou, levou o Brasil a uma situação bastante incômoda e paradoxal.

A dupla que opera a política externa brasileira, Celso Amorim e Mauro Vieira, detém uma concepção geopolítica ultrapassada e, na atualidade, se torna reacionária.

A não inclusão do Brasil na plataforma da Rota da Seda, a falta de um vetor claro de consolidação dos BRICS e a posição pendular entre ser um subimperialismo a favor dos Estados Unidos ou ser um líder da América do Sul – e, por que não, da América Latina – em um fortalecimento do Sul Global frente às ambições, sanções, anexações, beligerâncias, dos interesses imperialistas estadunidenses.

“Estamos acompanhando de perto esse processo político, mas a solução precisa ser construída pelos próprios venezuelanos, por meio do diálogo, e não imposta de fora”, “Continuaremos acompanhando a situação na Venezuela, mas sem ingerência, o que não quer dizer que não se pode ter opinião” afirmou Amorim.

Não cabe ao Estado brasileiro ter opinião de política interna de outro Estado. Cabe ter relações políticas e comerciais que atendam aos interesses recíprocos, sem o governo contrariar o princípio da autodeterminação dos povos.

Lamentavelmente, na prática, não é verdadeira a assertiva do assessor Celso Amorim de que não houve ingerência. Houve, sim, quando solicitou atas dos resultados eleitorais da Venezuela, em vez de respeitar o que o governo venezuelano afirmava. Não cabia, como não cabe, ser instrumento da oposição interna a um governo eleito de qualquer país, mormente de um Estado amigo.

Após essa ingerência, o governo brasileiro, para manter esse erro, continuou produzindo outros erros para justificar o primeiro.

A República Bolivariana da Venezuela iniciou, com Hugo Chávez, um processo democrático revolucionário com o objetivo tanto de tornar a soberania popular protagonista do destino do país, como também de garantir a soberania sobre suas riquezas, especialmente em petróleo (maior reserva de petróleo do mundo), e também de outros minerais, como ferro, diamante, ouro e bauxita, frente à cobiça dos Estados Unidos.

Recentemente, o presidente Maduro, sucessor de Hugo Chávez, estabeleceu um conjunto organizacional e eleitoral para que a população seja agente de defesa do país e de sua transformação. O calendário eleitoral inclui a renovação do Parlamento. Também serão escolhidos prefeitos, governadores e legisladores municipais e regionais, conforme anunciou, abaixo, o Presidente Maduro.

“Neste ano temos 10 eleições. Ou começamos cedo ou não vamos ter tempo. Ontem foi instalada uma mesa de diálogo com os 38 partidos políticos que participaram na corrida eleitoral de 28 de julho. Participaram todos”

“É altamente provável [que haja uma] consulta através de referendo constitucional para fazer uma grande e poderosa reforma da Constituição para ampliar a democracia, definir o perfil da sociedade a ser construída e definir claramente a base de uma nova economia”.

Não há democracia absoluta! Todas são condicionadas pela história política e cultural de cada país e pela correlação de forças políticas em cada um deles; de forma que existe democracia monarquista, como a da Inglaterra, na qual o chefe de Estado é o rei; a democracia dos Estados Unidos, onde o peso do voto popular é inferior ao voto de delegados dos partidos; existem as democracias sem sufrágio universal, mas com escolhas da base ao cume da pirâmide sociopolítica, como na China e em Cuba; existem democracias com direito à reeleição e outras sem reeleição. Todos esses singelos exemplos são para mostrar que não há um modelo único e acabado de democracia, até porque democracia é um processo inacabado e permanente de participação da sociedade real nos destinos e nas decisões da administração pública.

A dupla que opera a política externa do Brasil, Amorim e Mauro Vieira, não está sintonizada com as mudanças em curso da reorganização internacional do poder. O Brasil é um país importante em todos os cenários, mas tem que entender o seu tamanho político, econômico e bélico.

É evidente que o êxito da Revolução Bolivariana mexe com as estruturas da geopolítica imperialista na América Latina, bem como é um contraponto às democracias tradicionais.

A liderança do Brasil no Sul Global passa necessariamente pela liderança na América do Sul, em defesa dos interesses sul-americanos.

Quanto maior for o aprofundamento da revolução popular e anti-imperialista da Venezuela, maior será o contraponto a outros países que rezam pelo modelo tradicional de democracia liberal.

Respeitar inteiramente a autonomia do Estado bolivariano é consolidar a jurisprudência da autodeterminação dos povos, conforme reza a nossa Carta Magna (art. 4º, inciso III da Constituição Federal de 1988). O inverso disso é a divisão do mundo entre imperialismos e subimperialismos de um lado e os países subalternos de outro.

Francisco Celso Calmon, analista de TI, administrador, advogado, autor dos livros Sequestro Moral – E o PT com isso?, Combates Pela Democracia; coautor em Resistência ao Golpe de 2016 e em Uma Sentença Anunciada – o Processo Lula. Coordenador do canal Pororoca e um dos organizadores da RBMVJ.

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Last Update: 20/01/2025