Réquiem para o Cine Glória
Dr. Fonseca
Depois que tivemos aquela conversa comprida na curva dos anos 2000 e o senhor escreveu aquele livro, enfeitando bastante meus casos e me fazendo famoso do Oiapoque ao Chuí como se eu fosse um cantor sertanejo, desd’entonces que eu me encaramujei em casa. Não foi por nenhuma filosofância, não. Foi mesmo pela PVC (Porra da Velhice Chegando), doença que aprendi da boca de um doutor médico.
Agora escrevo pra lhe contar o que senti ao ver na televisão o incêndio no Cinema Glória. Cada chama que subia doía no coração. Somente o senhor pode aquilatar a dor da bexiga lixa que aquela notícia causou na minha modesta e propedêutica pessoa. Liêdo Maranhão, se vivo estivesse, nessa hora também estaria troncho de desgosto.
Como é que os homens públicos permitiram um desgraça dessa? E os homens particulares também, comerciantes lá onde era o glorioso cinema! Foi lá, no Cine Glória, nas beiradas de 1940, onde eu batia ponto religiosamente na Sessão Jiboia, que me iniciei na vida aventurosa e donairosa de contador de filmes por esse mundo véio sem porteira.

A Sessão Jiboia, com ingresso baratinho, emendava dois filmes no horário do meio-dia, em dia de semana e lotava! Toda a cambada que fazia comércios e trambiques ao derredor do Mercado de São José – os vendedores de meizinhas, cambistas de jogo do bicho, propagandistas de folhetos, adivinhadores da sorte, retratistas lambe-lambe, funileiros, chaveiros, engolidores de fogo e negociantes de figas e patuás – toda essa corja costumava se empanturrar de chambaril e mão-de-vaca no almoço e se encafuava na sombra do Glória pra fugir do calor da gota serena. Era uma função meio esquisita: na tela, passando as maiores tropelias inventadas por Roliúde e nas cadeiras todo mundo dormindo de boca aberta, roncando! Só eu que, apreciador de uma fita de Rock Lane ou Hedy Lamarr, ficava de olho aberto, aproveitando a promoção. E, como o senhor sabe, decorava os filmes para contá-los nas feiras em língua nordestina, passando o chapéu para arrecadar o meu sustento.
Imagine, doutor, minha desconsolação com o incêndio do Cine Glória!
Sou pequeno, não tenho mais voz, fui esquecido pelo público, estou velho e cansado. Mas o senhor, doutor, com sua prosápia e bizarria, pode falar por mim e arrenegar esse crime contra o Patrimônio Histórico Lembrancístico e Cinematográfico de Pernambuco, do Nordeste, quiçá do Brasil.
Assinado seu amigo e admirador, Severino Ramos Soares da Silva, conhecido do Sertão ao Litoral pelo nome de BIBIU.
Homero Fonseca é pernambucano, escritor e jornalista, formado pela Universidade Católica de Pernambuco. Foi editor da revista Continente Multicultural, diretor de redação da Folha de Pernambuco, editor chefe do Diario de Pernambuco e repórter do Jornal do Commercio. Foi também professor de Teoria da Comunicação e recebeu menção honrosa no Prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. Atualmente, dedica-se à literatura e mantém um blog em que aborda assuntos culturais.
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