A propósito, lembrei de uma história que me foi contada por um emérito psicanalista a respeito de como podemos abordar algumas questões, inclusive o direito de contar piadas politicamente incorretas.

Havia uma jovem senhora que era mãe de quatro filhos, sendo o último uma criança autista. Veio à consulta com o psicanalista – que era especializado no assunto – para tratar de questões relativas ao seu desenvolvimento. Em determinado momento ela comentou que a criança tinha o “péssimo hábito” de pegar a comida com a mão, amassar entre os dedos e jogar longe. Aquilo produzia enorme irritação nos pais, em especial na mãe, que tinha muito mais contato com a criança e que ainda era sobrecarregada com o cuidado dos outros três filhos maiores. Narrou a rotina diária da hora do almoço, seu cansaço, a repetição dessa cena e a sensação de raiva que tinha por não saber como agir nesse caso. Pediu ao analista sua opinião. Ele imediatamente perguntou: “Como a senhora tratou este tipo de ocorrência com seus outros filhos?”

Ela respondeu: “Ora, eu dava um ‘pito’ neles. Dizia que não era “empregada” deles, que não podia limpar 20 vezes o chão, que não tinha saúde para isso, que tinha marido e outros filhos para cuidar, etc.”

O psicanalista ponderou por uns instantes e disse algo que até hoje me espanta: “Funcionou com eles?”, e ela respondeu afirmativamente. Ele então arrematou: “Pois faça o mesmo com o menorzinho. Vai funcionar também.”

Ao escutar a história, e diante do sorriso um pouco debochado do analista, resolvi apresentar minha inconformidade. “Mestre, não lhe parece óbvio que este bebê estava passando por uma fase absolutamente natural do seu desenvolvimento, aprendendo a consistência dos alimentos, entendendo as noções de falta e presença ao jogar longe o brócolis que tinha na mão, ao se sujar, ao sentir o cheiro da comida nas suas mãos, etc.? Não lhe parece evidente que repreender a criança em sua experiência lúdica com a comida seria um erro, um equívoco e um entrave ao seu aprendizado?”

Ele sorriu da minha observação e respondeu assim: “Você tem toda a razão. Tudo o que você pondera é correto. Realmente a mãe estava diante de um processo natural de aprendizado e repreender não é o mais ajustado. Entretanto, você omite dois pontos fundamentais: o primeiro é que a criança fazia isso na hora do almoço, ao lado dos seus irmãos, que testemunhavam as atitudes da mãe. O segundo ponto é de que se trata de uma criança autista. Neste cenário, eu acho mais adequado que a criança seja atendida da mesma forma que os irmãos foram, para não ficar sedimentada na cabeça deles que o caçula é diferente, que tem privilégios’, que pode fazer o que os outros não podiam. Eu acredito que a ideia de acolhimento e de identidade com os irmãos é muito mais importante do que observar essa regra – repito, correta – sobre a etiqueta ao almoçar com a família. Com crianças autistas, é essencial mostrar que são iguais aos outros, que não serão superprotegidos, que também receberão reprimendas e que não terão tratamento especial.

Durante muito tempo fiquei confuso com esta resposta, mas finalmente entendi que tratar de forma igual é difícil e impõe desafios, mas que continua sendo o melhor e mais seguro caminho para a integração. O que o analista queria enfatizar era: não crie seu filho numa bolha de proteção e não crie para ele um espaço de discriminação. Da mesma forma, eu digo: não trate nenhum grupo de pessoas maduras como se fossem inerentemente incompetentes. A mensagem para os irmãos era: é evidente que o irmão de vocês é especial, mas isso não dará a ele qualquer tipo de privilégio. Entretanto, isso significa abandonar as estratégias de proteção que, durante um tempo, ajudam e garantem a sobrevivência, mas cuja continuidade determina estagnação e isolamento, deletérios para o crescimento. Proibir piadas e punir os piadistas jamais impediu que elas circulassem. Ou seja: não adianta nada proibir, é inútil e essas penas funcionam apenas como vingança social, estimulando sentimentos de revanchismo, mas são incapazes de mudar o padrão social, que só é modificada por meio da lenta sedimentação de novos valores, e não por imposições judiciais.

Assim, mesmo reconhecendo que algumas piadas podem ferir suscetibilidades, magoar e até ofender, ainda acho mais valioso permitir que elas circulem livremente – por pior que sejam os gracejos – do que aplicar proibições, vetos e censuras. O malefício a uma pessoa ou grupo pode ser revertido pelo incentivo à autoestima, exaltando as qualidades ao invés de enfurecer-se com os ataques. Entretanto, a censura, mesmo quando feita por caridade e com as melhores intenções, abre um precedente terrível, que fará mal às próprias comunidades que se pretende proteger.

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Last Update: 11/06/2025