Dois anos após sua primeira edição em inglês, A dívida impagável – Uma crítica feminista, racial e anticolonial do capitalismo finalmente ganha uma edição brasileira. Escrita pela intelectual carioca Ana Luiza Ferreira da Silva, professora na Universidade de Nova York, onde codirige o Laboratório de Estudo Anticolonial e Racial, a obra é um mergulho profundo e esclarecedor na história opressora de colonização europeia nas Américas — sob o ponto de vista daqueles que mais sofreram as violências, os povos negros e originários.
Como tudo o que foi extraído e expropriado segue presente, enquanto matéria, no mundo de hoje, Silva entende que não há como reverter o dano. Ao mesmo tempo, ela vê na perspectiva feminista, negra e anticolonial um mecanismo para debater, lidar e buscar mitigar os efeitos que as populações outrora subjugadas ainda enfrentam na atualidade.
“Há 150 anos, donos de escravos vendiam e torturavam e estupravam as filhas e filhos de seus escravos e escravas. Todos os dias neste mesmo Brasil o Estado mata pela ação ou omissão da polícia, ou deixa morrer por outros órgãos e instituições, filhas e filhos de pretas e pretos”, afirma Silva à DW.
Em entrevista à DW, a socióloga aborda a questão da reparação e da importância de trazer uma perspectiva negra e feminista para esse debate. “Não é só o passado que foi ruim. O presente não tem nada melhor”, destaca.
DW: Já no título, seu livro fala que é impagável a dívida do estrago feito pela humanidade, principalmente pelos brancos, no contexto escravocrata. Não há nenhuma forma de pagarmos por essa dívida?
Ana Luiza Ferreira da Silva: Não. A dívida é impagável exatamente pelo fato de ser impossível retornarmos àquilo que deveria ter sido, existido ou acontecido se a violência colonial e racial não tivesse sido mobilizada pelo capitalismo para facilitar as suas necessidades, seus objetivos e ganhos.
Ponto importante do argumento do livro é que, com base na física quântica, este propõe uma leitura da expropriação que enfatiza como aquilo que foi extraído antes está na composição do que veio a existir, de forma a continuar na composição material dos elementos do que existe hoje e do que vai existir daqui para a frente. Essa é a razão pela qual pagar a dívida, enfrentar a dívida, descolonizar o mundo é impossível. Mas a chamada para a descolonização tem um valor ético. É impossível materialmente, mas eticamente tem um valor.
A descolonização, que para mim é um retorno do valor total expropriado do trabalho escravo e extraído de terras dos povos originários sob condição de violência total, é materialmente impossível, mas eticamente imprescindível. A impossibilidade de pagar a dívida, de retornar o que foi extraído, deve orientar decisões sobre como tentar mitigar os efeitos dessa expropriação, dessa extração. Essa impossibilidade, como um horizonte ao qual se tenta atingir, mas nunca se atinge, tem de mover decisões mais e mais corretivas para se aproximar desse impossível. Essas decisões levam a políticas públicas, mas, é claro, também a práticas individuais e pessoais.
A senhora promove uma reflexão a partir de uma forte imagem: a dificuldade que temos de relacionar o número de chicotadas que um antepassado sofreu com a possibilidade de uma pessoa negra estar desempregada ou encarcerada hoje. Isto desconstrói a falácia meritocrática? De que forma fazer a população de hoje compreender isso?
Creio ser essa a parte mais difícil de nossa tarefa política de reparação. No primeiro capítulo [do livro], cubro exatamente essa impossibilidade de compreender como algo que aconteceu há tantos anos continua a ter efeito no presente, não por ter causado danos mentais, morais e intelectuais irreversíveis nas pessoas e populações subjugadas, mas porque os mecanismos e discursos políticos do presente continuam o trabalho exercido pela violência total que propiciou a expropriação de terras de povos originários e de trabalhos de pessoas escravizadas por 300 anos ou mais.
Aquilo que foi feito através da lei […] agora é feito pelas representações, pelo discurso, pelos significados raciais. Aquilo que foi permitido por conta de uma relação de propriedade, foi suplicado pelo conhecimento científico e divulgado através da educação e da mídia como autorizado, por conta de [argumentos como] inferioridade mental, moral, intelectual de negros e indígenas. O argumento da inferioridade é o que justifica a violência total do passado e do presente. Continuamos tendo essa mobilização de violência total através da letalidade policial, através da autorização por inação ou por ação.
No passado escravocrata, o negro era “coisificado”, tratado como um ente sem direitos nem liberdade. Este panorama histórico permite que analisemos o passado sem corrermos o risco de anacronismos, é verdade, mas considerando que se trata de um tema tão importante e de uma ferida tão gigantesca, podemos dizer que não há como julgar de outra forma que não como algozes de outros humanos o que fizeram os senhores, traficantes e todos os que anuíram com a escravidão?
É quase impossível não orientar a avaliação moral por conceitos outros do que os que predominam num dado momento. Os que tratavam seres humanos como escravos não só ignoraram [sua humanidade] como usaram traços humanos das pessoas escravizadas como elementos de poder para tortura psicológica e emocional.
Ao mesmo tempo, a escravidão durou três séculos e até agora o mundo que se construiu depois da primeira onda de colonização europeia, passamos mais tempo sob a escravidão do que sem esse regime. Embora o discurso predominante hoje defenda a universalidade, a igualdade, a sacralidade da vida humana, nós, pessoas negras ou originárias sabemos de momentos em que essa dignidade humana nos é negada. São atos cotidianos de discriminação e exclusão. Ou naqueles não menos cotidianos atos de violência total. Sabemos o número de crianças jovens e negras que morrem pela violência do tráfico ou da polícia, morrem pelo abandono do Estado ou pelas mãos do Estado.
Há 150 anos, donos de escravos vendiam e torturavam e estupravam as filhas e filhos de seus escravos e escravas. Todos os dias neste mesmo Brasil o Estado mata pela ação ou omissão da polícia, ou deixa morrer por outros órgãos e instituições, filhas e filhos de pretas e pretos. Na verdade, não se trata de olhar o passado com os óculos morais do presente. O fato é que a racialidade continua autorizando que atos de violência total, de outra maneira inaceitáveis, de violação de dignidade humana, continuem acontecendo contra pessoas pretas e originárias. Não é só o passado que foi ruim. O presente não tem nada melhor.
Por isso é tão importante trazer a perspectiva feminista negra anticolonial para o debate?
A proposta do feminismo anticolonial negro inclui a produção de instrumentos analíticos e de contribuições filosóficas e artísticas que visam a estimular tanto uma nova inteligibilidade como o cultivo de uma sensibilidade que não se adeque às necessidades do capitalismo, que não nos torne disponíveis para o extrativismo, a expropriação e a exploração. Quando falo nós, falo todos. Todas as coisas que existem neste planeta.