Cerca de 5 mil ex-funcionários da extinta Panair, tradicional empresa de aviação criada em 1929 e extinta em 1965 pelo regime militar, receberam um pedido de desculpas coletivo do Estado brasileiro, durante a última audiência do ano da Comissão de Anistia, na sexta-feira 29. À época, esses trabalhadores perderam o emprego pelo simples fato de os proprietários da empresa se negarem a apoiar o golpe de 64, provocando a ira dos militares, que decretaram a falência da companhia aérea numa canetada.

Foram necessários 60 anos para uma retratação pública. Assim como aconteceu no caso da Panair, a Comissão de Anistia julgou outros sete pedidos coletivos e cerca de 1,5 mil processos individuais este ano, um balanço que supera os números de 2023, quando só foram apreciados 80 processos. Para 2025, a estimativa é julgar a mesma quantidade de casos deste ano e, em 2026, zerar todos os pedidos de anistia. “Esperamos que o Estado consiga, depois de duas décadas e meia, completar esse jubileu de prata. Não é possível que a sociedade brasileira tenha de esperar tanto tempo para esse reconhecimento público”, destaca Eneá de Stutz, presidente da Comissão de Anistia, colegiado criado em 2001.

O julgamento da Panair é emblemático porque todos os funcionários foram demitidos de forma compulsória em represália aos donos da empresa, mas outros três casos julgados este ano ficarão marcados para sempre nos trabalhos da Comissão de Anistia. Um deles foi o julgamento dos povos Krenak, de Minas Gerais, e Guyraroká, de Mato Grosso do Sul, em abril, na primeira audiência da Comissão em 2024. Nos dois casos, os indígenas foram perseguidos, presos e torturados, acusados de subversão e de fazer oposição ao regime militar. Em uma sessão emocionante, Stutz ajoelhou-se para fazer o pedido de desculpas, cena semelhante à ocorrida em julho, na retratação ao povo Guarani Kaiowá.

Para alcançar um número recorde de apreciação dos pedidos de anistia, a Comissão adotou como método separar os casos por blocos e analisá-los coletivamente. Além disso, colocou os processos na ordem cronológica. Neste ano, julgou os pedidos feitos entre 2001 e 2010. Em 2025, vai analisar as solicitações realizadas entre 2011 e 2021. No ano seguinte, os casos que surgiram desde então e os que ainda estão por vir. A Comissão também estipulou em 2 mil reais o valor máximo de indenização permanente para a reparação econômica nos casos individuais, independentemente da ocorrência, que se soma a uma indenização de 100 mil reais em parcela única, como prevê a legislação que trata do tema.

“O protagonismo nos processos de reparação não pode ser meu, da Comissão nem do ministro de Estado. A vítima tem de ter voz para apresentar suas demandas de reparação. O julgamento dos Guarani Kaiowá, por exemplo, foi uma sessão linda, porque eles tiveram liberdade e confiança para falar o que queriam e do jeito deles, tanto que optaram por se manifestar no idioma deles e não na língua daqueles que sempre os reprimiram, que é o português”, relata Stutz, ressaltando que a centralidade da vítima é um importante requisito previsto pela ONU em julgamentos como esses.

No mesmo dia da sessão dos Guarani Kaiowá, a Comissão julgou um caso coletivo de imigrantes japoneses que foram colocados num campo de concentração em São Paulo, no pós-Guerra, entre 1946 e 1947. “Foi emocionante ver o auditório lotado com uma centena de senhores e senhoras acima dos 70 anos de idade, representando seus familiares.” Com um atraso de quase 80 anos, a Comissão de Anistia fez mais um pedido de desculpas coletivo. O recorte temporal da Comissão vai de 1946 até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, por isso abarcou o caso desses imigrantes.

A expectativa é de zerar a fila de processos até o fim do mandato de Lula, em 2026

“É superimportante a gente concluir a transição para a democracia. A Comissão de Anistia precisa finalizar sua tarefa de reparação junto aos perseguidos políticos, a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos precisa dar uma resposta aos familiares e o que aconteceu com seus entes queridos, e os responsáveis pelas violações de direitos humanos no período da ditadura têm de ser responsabilizados penalmente, para que a gente não tenha a possibilidade de pensar em um novo 8 de Janeiro”, dispara Stutz, referindo-se ao debate atual sobre anistia para perdoar os extremistas ligados ao ex-presidente Jair Bolsonaro, que tentaram, de várias formas, dar um novo golpe de Estado, dessa vez com o plano de assassinar o presidente Lula, o vice Geraldo Alckmin e o ministro do STF Alexandre de Moraes.

“Enquanto a gente não completar essa tarefa da transição, seja no campo da reparação, da memória e da verdade, e, principalmente, da responsabilização, esse fantasma vai continuar rondando as nossas cabeças. Se não punir, vai ser sempre possível alguém ou algum grupo achar que pode dar um golpe, porque o máximo que vai acontecer é o golpe ser frustrado, já que não terá consequências para o golpista”, finaliza Stutz. Segundo Nilmário Miranda, assessor Especial para a Democracia, Memória e Verdade do Ministério dos Direitos Humanos, a Comissão de Mortos e Desaparecidos, recriada em agosto deste ano, tem como uma de suas prioridades retificar o atestado de morte daqueles que ainda hoje estão na lista dos desaparecidos políticos, para constar no documento a causa real do assassinato.

Outra iniciativa será a perícia de ossadas que vieram da região do Araguaia, possivelmente de brasileiros assassinados pelos militares, e de outras que estão em cemitérios, como o de Perus. A Comissão também pretende construir memoriais em locais utilizados pelo regime militar para matar e torturar os opositores. “A relação da democracia com a memória e a verdade passa por não deixar esquecer o que aconteceu, para que nunca mais se repita. Quando o passado não é resolvido, como aconteceu com os golpistas de 1964, eles voltam depois como Kids Pretos”, diz Miranda, referindo-se aos militares da elite do Exército envolvidos na tentativa de golpe após a derrota de Bolsonaro, em 2022. “Sem memória e verdade, não há democracia.” •

Publicado na edição n° 1341 de CartaCapital, em 18 de dezembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Passado a limpo’

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Last Update: 12/12/2024