Na onda do sucesso do filme Ainda Estou Aqui, consagrado na terra do Tio Sam, nada mais natural que ouvir a opinião do autor do livro que lhe deu origem sobre os rumos da política atual. Marcelo Rubens Paiva, filho da personagem central da história e do deputado Rubens Paiva, morto sob tortura na ditadura militar de 1964, afirmou à CNN que Lula deveria, em 2026, dar espaço à renovação no campo da esquerda, o que se traduziria em um de três nomes: Fernando Haddad, Simone Tebet ou Geraldo Alckmin.
Tal opinião, vinda de alguém cujo pai foi vítima de um regime que perseguiu e torturou militantes de esquerda, chega a causar alguma estranheza. A que “esquerda” pertenceriam Geraldo Alckmin, Simone Tebet e mesmo Fernando Haddad? Os dois primeiros, com certeza, estariam mais alinhados ao regime ditatorial de 1964 que a qualquer arremedo de esquerda. A opinião de Paiva, conquanto não seja em si tão importante, corrobora a confusão que hoje impera no cenário político, da qual a burguesia tira grande proveito.
Bolsonaro, por questões ideológicas, seria o representante da “volta da ditadura militar”, como se esse regime se tivesse instaurado no país apenas para instituir determinados valores reacionários. Omite-se que a repressão era um regime da burguesia, cuja atuação visava esmagar o povo. Com a ajuda do filme vencedor do Oscar, que omite a luta travada pela esquerda e se concentra no desaparecimento de Rubens Paiva, reforça-se a crítica aos métodos criminosos do regime, que torturava, matava e ocultava corpos dos seus opositores, sem, no entanto, demarcar o conteúdo político da luta.
Hoje a burguesia mudou de penteado e aparece como crítica de seus próprios métodos, agora obsoletos. Muito civilizada, como gosta de se apresentar, substituiu o pau de arara pelos superpoderes conferidos à última instância do Poder Judiciário. É preciso considerar que o novo método é muito mais vantajoso, pois é feito às claras, com o beneplácito da própria esquerda, em si tomada pelo moralismo identitário e “decolonial”. Enquanto se arvora em defensor da “democracia”, aqui reduzida a uma espécie de antítese dos porões da ditadura, o STF defende os interesses da mesma classe que oprimiu o povo durante 20 anos.
Hoje o STF, com seus superpoderes, mira o bolsonarismo porque essa corrente deu feição popular – e eleitoral – à direita no país. Com habilidade de angariar votos, Bolsonaro praticamente enterrou o PSDB, partido dos endinheirados, que, exatamente por seu poder econômico, sempre manipularam as eleições. Ao correr por fora e obter o voto popular, Bolsonaro ocupou o espaço da direita e passou a ameaçar a “zona de conforto” da burguesia entreguista, corrupta e submissa aos desmandos do capital estrangeiro.
Chega a ser decepcionante ouvir certas análises no canal progressista “247”, em que se explica, com ares de didatismo, que o STF, na época da Lava Jato, estava “acovardado”, mas que agora não estaria mais. Ora, se há algo de verdadeiro nisso, é preciso ser ainda mais didático: os patrocinadores da Lava Jato, operação de perseguição ao PT e à esquerda, são os mesmos patrocinadores da perseguição judicial a Bolsonaro. Nunca estiveram “acovardados”, antes eram coniventes com a Lava Jato e hoje usam os mesmos métodos contra o outro lado.
O governo do PT parece ter caído numa armadilha: para fazer oposição à direita bolsonarista, que tem força eleitoral, vê-se inclinado a defender uma operação de perseguição judicial ao seu principal adversário de urna, já “inelegível”. Unido àqueles que são seus maiores inimigos, só falta mesmo passar o bastão para Simone Tebet ou Geraldo Alckmin.