É fundamental acompanhar, no próximo período, como evolui a consciência de classe dos trabalhadores americanos diante das enormes contradições que o imperialismo está produzindo dentro de seu próprio território. Em 2024, os eventos não pararam de acontecer. Lembre-se de que foi nos Estados Unidos que ocorreram as manifestações mais contundentes contra a guerra na Palestina. A própria vitória de Donald Trump nas eleições é fruto dessas contradições. Além disso, é digno de nota o surgimento do Partido Comunista Americano e de vozes dissidentes barulhentas como Jackson Hinkel.

Nesse texto, resolvi analisar dois fatos desse ano que mostram uma rápida mudança de consciência que se manifestou em questão de meses. Em fevereiro, tivemos o caso de um jovem de 25 anos, que cometeu um ato extremo ao incendiar-se em frente à embaixada israelense em Washington, protestando contra a guerra em Gaza.

Escrevi sobre esse gesto em um texto aqui no Diário da Causa Operária, tendo como inspiração o filme “Kuhle Wampe” (1932), de Bertold Brecht. Em uma das cenas mais importantes, um trabalhador pequeno-burguês, diante do desespero do desemprego e falta de consciência de classe, opta pelo suicídio. Para ele e sua família, o desemprego era consequência da falta de talento e de vontade. “Um vagabundo”, muitos por aí falariam nos dias de hoje. Reflete a falta de entendimento das escolhas políticas da classe dominante. Morto de vergonha, o rapaz escolhe o sacrifício como forma de manter a dignidade.

Na época, com este exemplo do filme, cheguei a escrever: “Se de um lado, a ação do jovem ajuda a disseminar a verdade sobre Gaza, por outro, seu desespero também é sintoma da falta de consciência política revolucionária da sociedade em que viveu. (…) Não foram poucas as postagens que o qualificaram de “heroi”. Os herois revelam a dependência de uma sociedade a ações individuais de sacrifício, como a do jovem, ao invés da ação coletiva impulsionada por uma força revolucionária consciente que exige mudanças. O pobre rapaz se imolou por causa da inexistência, no atual momento histórico, de forças coletivas na sociedade estadunidense que possam impulsionar mudanças sociais reais contra a perversidade da classe dominante daquele país”.

No Brasil, tivemos também um gesto semelhante ao do jovem. No início de novembro, o chaveiro catarinense Tio França se suicidou em frente ao Supremo Tribunal Federal. Ele foi até lá com a intenção de atacar o edifício com fogos de artifício. Foi chamado de terrorista por toda a mídia, à esquerda e à direita. Bolsonarista, Tio França foi repudiado por todos. Mas sua imagem no chão molhado, na frente do STF, colocando fogos de artifício na cabeça é tão forte quanto a do jovem.

A sensação é que, ao contrário do americano que tinha consciência de ter matado crianças com seus bombardeios, Tio França escolheu sua cabeça por não conseguir mais encontrar solução para as contradições que a realidade estava impondo. Tio França perdeu a noção do concreto, do real e, em seu desespero, precisou pôr um fim à incompreensão. Mesmo assim, ele estava na vanguarda em relação a boa parte da esquerda, afinal, via no STF o que de fato é: um instrumento autoritário. Faltava vê-lo como um instrumento autoritário em defesa das burguesias nacional e internacional. O bolsonarismo tem esse limite: seus tipos políticos são seres em desespero e individualistas. Alheios à consciência de classe, se chocam com as contradições como muros intransponíveis. Dão murro em ponta de faca. O mais triste é ver sua foto de brasileiro nato, pardo e catarinense.

Na semana passada, em uma cena digna de cinema de uma câmera de segurança, um suspeito de 26 anos, um engenheiro de TI, assassinou o CEO de uma empresa multimilionária de seguros de saúde em Nova York. Um parêntesis antes de prosseguirmos: não podemos confirmar com toda a certeza que esse rapaz é o assassino. Diante da importância do caso e de sua relação com a luta de classes, não seria improvável que um bode expiatório fosse fabricado para ser submetido a uma punição exemplar. Para a análise aqui proposta, não importa exatamente o nome do autor da ação, mas a ação em si. Então, para o que segue, vamos manter o nome do suspeito como nosso personagem.

O mais interessante é perceber que, no intervalo de apenas nove meses, o autossacrifício tornou-se algo totalmente novo. Trata-se de uma transformação: enquanto o jovem se sacrificou, o suspeito escolheu a luta. Seu gesto contra o parasita, que no Brasil tentou um esquema contra clientes de planos individuais quando era controlador da Amil, atravessou as redes sociais e gerou uma avalanche de apoio. Memes, como esse que coloco para ilustrar esse texto, mostram o alcance do ato no imaginário americano. A seguradora usava um algoritmo de inteligência artificial programado para negar 90% dos pedidos dos clientes com um procedimento que seguia as seguintes regras: Defend, Deny, Depose, ou seja, Defenda, Negue, Destitua ou Elimine, na tradução para o português. Essas palavras foram escritas nas balas que atingiram a barata e rapidamente tomaram outro significado: se tornaram palavras de ordem.

O suspeito é bonito como um artista de cinema, bem nascido, inteligente e com um bom emprego. Ele está longe do perfil de um jovem que realizaria um gesto como esse. Mesmo assim, nem todo o dinheiro que possui foi capaz de protegê-lo da ganância neoliberal. Ao que tudo indica, o mau atendimento do plano de saúde e sua consciência de classe se juntaram em um momento preciso. Ele se tornou um novo tipo de heroi. Ao contrário do jovem, ele se tornou um justiceiro, aquele que resolve pelas próprias mãos as injustiças. É sabido que o sistema de saúde nos Estados Unidos é um dos mais perversos do mundo.

O ponto positivo do ato do suspeito está no fato de que sua ação não pode ser desvinculada da luta de classes. Não é possível esconder que o bilionário neoliberal teve o que mereceu por ser da classe dominante. É um exemplo notável. No entanto, da mesma forma que o ato do jovem e de Tio França, há uma contradição que precisa ser explicitada. O individualismo heroico do suspeito também é um beco sem saída para a classe trabalhadora. É, com certeza, um exemplo mais positivo, mas se não resultar na organização coletiva e na tomada de consciência sobre a superação do atual sistema econômico, cairá no esquecimento e terá sido em vão.

A reação da classe trabalhadora americana ao gesto do suspeito, apoiando sua ação contra o bilionário, não deixa de mostrar o potencial para a organização coletiva. A crise do capitalismo parece criar uma oportunidade para uma discussão mais aberta para uma mudança social concreta, mesmo que ainda pareça lenta. No entanto, essa transformação só será possível através de partidos políticos fortes, sindicatos e organizações sociais de esquerda focados na luta de classes. E só na luta de classes. A liderança desses movimentos deve estar alerta e organizada para aproveitar essa oportunidade. O caminho para a mudança social reside na ação política coletiva, guiada pela consciência de que esse sistema podre já deu.

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Last Update: 12/12/2024