Palestinos, bem-vindos ao inferno das prisões israelenses
Palestinos, bem-vindos ao inferno das prisões israelenses
por João Silva
Os testemunhos indicaram claramente uma política institucional sistêmica, focada no abuso e tortura de todos os prisioneiros palestinos mantidos em cárceres israelenses.
No início de agosto, a ONG israelense de direitos humanos, B’Tselem, publicou o relatório “Bem-vindos ao Inferno”, em que descreve o sistema prisional israelense como uma rede de campos de tortura. Nas 120 páginas do relatório é detalhado o abuso e o tratamento desumano de palestinos mantidos em instalações prisionais israelenses, militares e civis, principalmente desde 7 de outubro de 2023.
No início de julho de 2024, cerca de 9.623 palestinos se encontravam encarcerados, quase o dobro do número de prisioneiros de antes do início da guerra em Gaza. Destes, 4.781 estavam detidos sem julgamento, em “prisão administrativa”, sem que fossem apresentadas as alegações contra eles, e sem acesso ao direito de defesa.
São frequentes os atos de violência arbitrária, agressão sexual, humilhação, degradação, inanição, condições não higiênicas, privação de sono, proibição e punição por prática religiosa, negação de tratamento médico, levando inclusive a amputações e morte.
B’Tselem coletou testemunhos de 55 palestinos detidos durante esse período e posteriormente libertados, quase todos sem acusações. Destes, 30 são residentes na Cisjordânia, 21 na Faixa de Gaza, e 4 são cidadãos israelenses. Os testemunhos indicaram claramente uma política institucional sistêmica, focada no abuso e tortura de todos os prisioneiros palestinos mantidos em cárceres israelenses.
Essa política foi implementada pelo ministro de segurança nacional, Itamar Ben-Gvir, ultranacionalista de direita. O ataque cruel do Hamas e de outras organizações palestinas armadas a civis israelenses gerou um trauma e sentimento de vingança em boa parte da população judia israelense, do que se aproveitou Ben-Gvir para implementar um “estado de emergência prisional”, em 18 de outubro.
Nos anos anteriores ao 7 de outubro de 2023, os palestinos encarcerados em Israel já eram submetidos a graves violações de seus direitos, situação que foi em parte aliviada após os prisioneiros realizarem diversas greves de fome. Após a incursão do Hamas, deixaram de haver quaisquer objeções ao tratamento desumano e à prática de violência contra eles.
Os detidos foram considerados como “combatentes ilegais”, e com isso passaram a ficar sujeitos ao exército e não às autoridades prisionais. Ao não definir os detidos como prisioneiros de guerra, Israel passou então a proibir o acesso da Cruz Vermelha. Quando da realização das audiências com um juiz por vídeo conferência, o acesso a advogados era negado.
Então, com a leniência da Alta Corte de Justiça e do Procurador Geral de Israel, ocorreram violações flagrantes de normas e obrigações das leis de guerra e das leis internacionais de direitos humanos. O relatório da B’Tselem descreve em detalhes, os abusos a que os palestinos vêm sendo submetidos. Os relatos são chocantes. Até mesmo centenas de médicos foram encarcerados, agredidos e submetidos a abusos na prisão de Sde Teiman, sul de Israel, como publicado pelo The Intercept.
O abuso sexual de prisioneiros palestinos
Coincidindo com a publicação do relatório da B’Tselem, foram divulgadas pelo Canal 12 de Israel, imagens de uma câmera de vigilância interna em Sde Teiman. As imagens do vídeo vazado mostram um palestino sendo afastado dos outros prisioneiros, e submetido a estupro por agentes da segurança prisional, por detrás de biombos improvisados com escudos de combate.
Em entrevista ao jornal israelense Haaretz, o médico que tratou do prisioneiro revelou que ele sofreu “ruptura do intestino, ferimentos anais severos, costelas quebradas e além de ter o pulmão prejudicado”. Este incidente ocorrido ao final de julho, que apenas pode ser exposto devido ao vazamento das imagens e exibição pelo canal 12, levou à detenção de 9 soldados, mas representa apenas a ponta do iceberg do que ocorre nas prisões israelenses.
Entretanto, como o sistema judiciário israelense não se opõe aos campos de tortura, é bastante improvável que uma investigação independente possa ser conduzida, neste e em outros casos. A pressão da extrema-direita é grande pela libertação dos 9 soldados. Um grupo de manifestantes, que incluía ministros do governo, chegou a invadir o local onde os militares se encontravam detidos, o que é também mostrado no vídeo. Também estão incluídas as declarações de Matthew Miller, porta-voz do Departamento de Estado norte-americano, de que os relatos deveriam ser investigados pelo governo de Israel e pelo IDF, as forças de defesa de Israel.
Mas o que se pode esperar de um inquérito conduzido pelo governo israelense, quando o ministro da segurança, Itamar Ben-Gvir, declara que qualquer ação, inclusive o estupro, é permitida se for pela segurança do estado, e que era vergonhoso prender “nossos melhores heróis”. E também quando o ministro das finanças de Israel, o ultranacionalista Bezalel Smotrich, está mais interessado em exigir uma “imediata investigação criminal para descobrir os autores do vazamento das imagens do vídeo”, do que em apurar responsabilidades pelo ato criminoso.
Enquanto isso, prossegue o genocídio sendo cometido contra os palestinos em Gaza, conforme detalhado pela relatora especial das Nações Unidas, Francesca Albanese, em Anatomia de um Genocídio. Fica a indicação de que a degradação moral se tornou dominante na sociedade israelense. A ampla indiferença com o genocídio que vem sendo cometido em Gaza e com o tratamento desumano imposto aos palestinos sinaliza que o regime sionista não possui mais qualquer vestígio de uma face humana.
Recentemente, o Estado de Israel completou 75 anos de existência; resta ver se chegará aos 100 anos na forma atual, como um regime de Apartheid, do Rio Jordão ao Mar Mediterrâneo.
João Silva é professor aposentado da UENF, responsável pelo blogue Chacoalhando e pelo programa de entrevistas Agenda Mundo, veiculado no canal da TV GGN e da TV Chacoalhando.
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