Thomas Hummel descreve a investida dos primeiros seis meses de Trump. Ele argumenta que devemos situar seu neoliberalismo autoritário no contexto da crise econômica capitalista insolúvel, na qual o papel do Estado é gerir a austeridade ao invés de atender às necessidades humanas. Enquanto isso, sua megalomania grotesca dá expressão aos interesses da pequena burguesia.
Seis meses se passaram desde que Trump reassumiu o poder em Washington. Embora existissem muitos sinais esperançosos de resistência, não seria impreciso caracterizar esses últimos seis meses como um ataque.
Vale a pena parar um momento para refletir sobre a natureza do Trumpismo 2.0 agora que temos seis meses de experiência prática com isso.
Tomo como ponto de partida a perspectiva de que o trumpismo é a variante estadunidense do novo autoritarismo que passou a desempenhar um papel decisivo na política mundial. Pretendo analisar o trumpismo tanto da perspectiva do contexto internacional do capital, quanto em relação ao contexto específico estadunidense no qual o trumpismo está integrado. Gostaria de compreender o trumpismo em suas continuidades e rupturas com o período anterior do capitalismo neoliberal e explorar a relação entre o que é essencial e necessário ao governo em termos materiais, por um lado, e em que aspectos suas políticas resultam de um apego ideológico “romântico” à sua base, por outro.
A longa crise, o neoliberalismo e Trump
É essencial para uma compreensão do trumpismo uma análise da longa crise de lucratividade do capital, que remonta ao início da década de 1970.
Marx argumentou que a taxa de lucro tende a cair ao longo do tempo porque a competição impele os capitalistas a adotarem novas tecnologias que reduzem a necessidade de trabalho humano. Isso inicialmente garante uma vantagem competitiva e um aumento temporário no valor excedente para os primeiros que as incorporam. Mas, à medida que tais inovações se difundem pela indústria, a vantagem desaparece e a relação global entre trabalho (a única fonte de novo valor) e capital decresce. Como resultado, a massa de lucro extraída em relação ao investimento total começa a encolher, impulsionando a tendência de longo prazo de queda da taxa de lucro.
Mantendo em mente essa lei da economia capitalista, é essencial compreender porque as crises acontecem. Conforme as taxas de lucratividade caem, os capitalistas são impulsionados a produzir mais para compensar a queda nos lucros, causando crises de superprodução. Ao mesmo tempo, a baixa taxa de lucratividade faz com que os capitalistas busquem outros caminhos para seus investimentos, muitas vezes preferindo a especulação arriscada, criando bolhas que acabaram estourando, como fizeram em 2007 e 2008.
Os anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial foram marcados por um boom econômico sem precedentes. Duas Guerras Mundiais e a Grande Depressão causaram destruição massiva, abrindo novas possibilidades para o capital, enquanto grandes quantidades de investimento foram desperdiçados em gastos militares, mantendo a taxa de lucratividade alta. Isso resultou em um boom que durou até o início da década de 1970, quando a competição entre o Japão e a Europa Ocidental levou à realocação de novos investimentos em tecnologias que poupam mão de obra, ocasionando uma nova queda da taxa de lucro.
O período desse boom foi o único período da história estadunidense em que o “sonho americano” estava disponível para amplos setores da população. A combinação da luta de classe na década de 1930 e as necessidades do capital durante esse período específico permitiram uma renda relativamente alta e estabilidade para a classe trabalhadora, particularmente, embora não exclusivamente, para a classe trabalhadora branca.
Mas conforme o boom foi chegando ao fim no final da década de 1960 e início da década de 1970, o capital necessitava de um modo de restaurar a lucratividade. Poderia fazer isso empregando o Estado como um instrumento de bem-estar de classe, reorganizando as condições de trabalho de modo que as condições de trabalho e os salários se tornassem piores, amplos setores da população seriam retirados do emprego estável, os programas de governo seriam cortados e o capital poderia compensar a diferença.
Em síntese, o neoliberalismo foi um estreitamento violento do círculo daqueles que tinham acesso a uma vida decente. A ordem do pós-guerra sobreviveu à crise da década de 1970 por meio desse estreitamento. Então, militarizou-se a fronteira ao redor desse círculo cada vez menor, estigmatizando aqueles que estavam do lado de fora como preguiçosos, indignos ou perigosos, ao mesmo tempo em que reprimia-se violentamente suas aspirações por uma vida melhor. Vimos isso no Chile em 1973, na greve dos mineiros no Reino Unido e na lei criminal de Clinton, que levou uma grande parte dos jovens negros da classe trabalhadora, recentemente tornados supérfluos, para as prisões.
No presente artigo, me referirei a esse estreitamento do círculo militarizado como o “círculo do bem-estar social”. Não se trata de bem-estar no sentido do Estado de bem-estar e suas políticas como Medicaid, Medicare, Seguro Social e benefícios para o desemprego (embora por vezes assuma essa forma), mas bem-estar em um sentido mais geral de acesso a uma vida decente, estável e confortável.
Durante este período, o papel do Estado não foi minimizado. Ao invés disso, o papel do Estado mudou. De bem público ao investimento direto, o Estado assumiu o papel de gerenciar violentamente a implementação da austeridade.
Tal militarização do Estado se aprofundou com o Patriot Act e a criação do Department of Homeland Security após 11 de setembro de 2011, a criação do ICE [Immigration and Customs Enforcement] em 2003, a expansão massiva da máquina de deportação na era Obama e, apesar da queda das taxas de criminalidade, a explosão dos orçamentos da polícia, indo de 10,5 bilhões de dólares em 1975 para 233 bilhões de dólares em 2023. Ajustado pela inflação, trata-se de um aumento de mais de 400 por cento durante esse período.
O neoliberalismo completou sua hegemonia ao conquistar os partidos capitalistas de esquerda para sua causa. Entra em cena o “neoliberalismo progressista” de Tony Blair, dos Clintons e de Obama, que aceitam os princípios econômicos do neoliberalismo, mas procuraram conciliá-lo com as questões sociais progressistas, como os direitos LGBTI+, os direitos das mulheres e a justiça racial. É importante acentuar que a questão não era se o estreitamento do círculo de bem-estar social deveria ser revertido ou não. Ao invés disso, essas administrações consideraram o estreitamento como um dado garantido, enquanto obtinham credibilidade progressiva argumentando em favor de uma distribuição racial e de gênero mais equitativa no interior desse círculo.
Se o neoliberalismo foi uma solução temporária da crise do início da década de 1970, então o colapso econômico de 2007-2008 marcou o que um livro do Estado espanhol chamou de “a crise da solução da crise”. Apesar do assalto do neoliberalismo sobre a classe trabalhadora tivesse temporariamente restaurado a lucratividade do sistema, a economia entrou em declínio constante até que o capital buscou lucratividade no tipo mais arriscado de especulação, criando a bolha que acabou estourando.
Desde 2008, o papel do Estado tem se transformado novamente. A intervenção estatal após a crise salvou a economia. O que havia restaurado a lucratividade antes da segunda metade do século XX foi a destruição em massa do capital não lucrativo. Entretanto, o capital acumulou a tal extensão que o Estado não tinha outra escolha senão intervir caso não quisesse arriscar o colapso total do sistema. Esse foi o fenômeno do “Too Big to Fail” [Grande demais para falir]. Como não existia modo de sair da crise, o Estado teve que assumir um papal cada vez maior para gerenciá-la.
O resultado foi uma recuperação muito débil desde 2008, já que o Estado foi forçado a intervir com frequência e intensidade cada vez maiores para sustentar o capital não lucrativo e evitar o colapso. Como resultado, a dívida dos EUA cresceu muito, mais do que dobrando, passando de 13,64 trilhões de dólares em 2007 para 35,64 trilhões de dólares em 2024. No restante do mundo desenvolvido, a dívida estatal é maior do que em qualquer outro momento desde as guerras napoleônicas. A luta pelos espaços de lucratividade que restaram desde 2008 levou a uma crescente tensão interimperialista que frequentemente se transformou em guerras por procuração, com a constante ameaça de um envolvimento direto.
Esse foi um período de enorme instabilidade social, pois a fraca retomada e os danos críticos causados à hegemonia da classe dominante abriram a porta para alternativas, tanto à esquerda quanto à direita. Occupy, o Tea Party, o BlackLives Matter e outros, todos foram expressão do declínio da hegemonia da classe dominante nos EUA.
Trump entra em cena, oito anos de uma crise sem resolução, oito anos de uma crise que provavelmente não terá uma solução. Trump entra em cena em uma situação na qual a única questão é sobre como gerenciar um sistema que está cada vez mais fora de controle, na qual a confiança no sistema colapsou e a economia apenas temporariamente pode ser sustentada por meio de mais desapropriação de uma classe trabalhadora já exausta e um aprofundamento qualitativo da violência estatal. Enquanto o primeiro mandato de Trump foi limitado por seu controle incompleto sobre seu partido, o colapso da resistência interna e o impacto radicalizante de eventos como o “Beer Gut Putsch” de 6 de janeiro de 2021 [1] fizeram com que, em seu segundo mandato, o trumpismo tivesse liberdade de ação.
O One Big Beautiful Bill [2] é um exemplo perfeito do neoliberalismo autoritário da política trumpista. Isso representa ambos os lados da equação neoliberal: austeridade e violência estatal. É a maior transferência de riqueza dos mais pobres aos mais ricos na história do país, ao mesmo tempo em que aloca 75 bilhões de dólares ao ICE, expandindo maciçamente o que se tornou efetivamente uma polícia estatal repressiva.
O segundo mandato de Trump marcou um claro ponto de inflexão na governança neoliberal, no qual as tendências graduais finalmente deram origem a algo totalmente novo, e a natureza da gestão do Estado tomou nova forma em uma economia em declínio e em uma sociedade fora de controle. Os problemas da crise econômica e a falta de confiança no sistema são resolvidos com a violência estatal. Trump representou um novo tipo de política para um sistema que exigia um nível qualitativamente mais elevado de militarização da fronteira em torno do círculo de bem-estar social, que não mais podia depender da coerção ideológica para manter a estabilidade, e militarizou uma parte da população contra a outra para lutar por seu lugar dentro desse círculo cada vez menor. “Construir o muro” foi apenas a expressão mais evidente dessa nova política.
Trump conseguiu se colocar como uma alternativa ao atacar o neoliberalismo progressista que uniu questões sociais progressistas com políticas de austeridade. Esta é a fonte da força de sua cruzada contra a “cultura woke”, que coloca setores da população na periferia do círculo contra populações que supostamente recebem uma vantagem que não merecem devido ao seu histórico demográfico.
O grotesco romance de Trump
Essas posições demonstram o que o trumpismo está fazendo pelo capital nesse momento. No entanto, isso não explica os aspectos grotescos e ilusórios da ideologia e da prática de Trump. Como podemos compreender os aspectos do trumpismo que parecem descolados da realidade: as tarifas, o antagonismo com os aliados mais próximos dos EUA, a ameaça de invasão da Groenlândia, a explosão da dívida pública por meio da OBBB e o sequestro de trabalhadores agrícolas imigrantes essenciais?
As políticas de massa que têm a pequena burguesia como sua base, tais como o trumpismo e o fascismo, na prática real são sempre o resultado de uma síntese difícil entre as necessidades de, pelo menos, uma seção da classe capitalista e a ideologia pequeno-burguesa de sua base. Essa ideologia, tentando resolver a crise sem questionar o capitalismo, é, de uma forma ou outra, necessariamente desvinculada da realidade. Em síntese, ela sempre tem um pé na realidade e um pé fora dela.
O pé que está fora da realidade tem uma qualidade romântica. Desde seu início artístico no final do século XIX, o romantismo sempre foi o movimento artístico da pequena burguesia alienada, buscando uma solução para as realidades sombrias do presente em uma compreensão idealizada do passado nacional. De certo modo, Hitler e Mussolini foram o ideal romântico da pequena burguesia em seus respectivos países e, de maneira semelhante, há uma qualidade romântica quase grotesca na figura de Trump, obviamente expressa da maneira mais estadunidense possível. Em muitos sentidos, ele é o ideal romântico da pequena burguesia estadunidense. Grosseiro, disposto a fazer qualquer coisa para vencer, sem medo de “dizer as coisas como elas são”, aparentemente bem-sucedido nos negócios e implacavelmente egoísta em seu modo mais grosseiro, tudo isso mascarando uma consciência reprimida de sua própria mediocridade. Ele é completamente caracterizado por esse romance autorreferencial que é a megalomania. É um tipo de megalomania que vislumbra no domínio global dos EUA seu próprio mérito pessoal e um direito inalienável de nascença.
Foram precisamente estas qualidades que deram a Trump a base de massas que o levou ao poder, já que a pequena burguesia estadunidense se reconhece nele e o compreende como seu campeão. Essas qualidades também fornecem uma explicação sobre como suas políticas se tornam completamente desvinculadas da realidade, decorrentes de uma crença romântica na falta de limites de suas próprias habilidades e no poder dos EUA, sem servir a nenhum interesse econômico restrito.
Entretanto, existe uma diferença chave entre o fascismo tradicional e o trumpismo aqui. Sob a fusão do poder estatal e corporativo do fascismo, um novo boom e estabilidade foram possíveis por um tempo. A diferença hoje é que não existe nenhuma solução possível por um tempo, permitindo que os elementos românticos do trumpismo escapem da disciplina da necessidade e desfrutem de um grau maior de existência independente. O que resta é uma combinação de brutal autoridade e uma orgia de roubo e violência, à medida que as origens lumpen-capitalistas e semi-criminosas de Trump encontram expressão no comando do Estado.
Futuros possíveis
A crise econômica sem solução e a política desonesta de Trump tornam o trumpismo um sistema extremamente instável. Além de administrar o descontentamento da população em geral, Trump também precisa administrar a coalizão instável da qual é líder, composta por setores do capital, como as big techs e o grupo do Projeto 2025, bem como o movimento MAGA, mantido à distância do poder, mas, ainda assim, crucial para sua coalizão. O divórcio com Musk e a cisão dentro do MAGA em relação aos arquivos de Epstein são evidências dessa instabilidade [3].
O que pode ser dito com certeza sobre estas políticas é que suas características desvinculadas da realidade tendem a levá-las à autodestruição. A questão é a forma que essa autodestruição assumirá e que tipo de perdas ocorrerão.
Uma primeira forma possível de autodestruição seria, como resultado dos danos causados pelas políticas de Trump, que o centrismo do Partido Democrata desfrutasse de uma restauração após as eleições intermediárias de 2026 e as eleições gerais de 2028. Isso pressupõe que eleições livres e justas ainda existam, o que, infelizmente, não é garantido.
Considerando sua idade, este pode ser o fim da trajetória de Trump, mas já que a crise continuará e os Democratas serão incapazes como sempre de oferecer uma solução efetiva, a ameaça da extrema-direita, manifestando-se de uma forma nova, talvez mais radical e coerente, permanecerá.
Uma possibilidade assustadora diante desse cenário é que, em um modo parecido ao Partido Trabalhista no Reino Unido e ao Partido Democrata nos EUA, que se adaptaram à política neoliberal após a vanguarda do neoliberalismo inicial de Thatcher e Reagan, esses partidos podem adotar grande parte do autoritarismo e da austeridade de Trump no futuro. Já vimos alguma evidência disso com o Partido Trabalhista de Keir Starmer implementando uma brutal austeridade, ao mesmo tempo em que legalmente classifica os membros de uma organização de solidariedade à Palestina, a Palestine Action, como terroristas.
Outra possibilidade é a autodestruição por meio da guerra. Trump não tem se mostrado avesso a ações militares e, à medida que as tensões imperialistas aumentam com a China e a Rússia, a megalomania de Trump pode levá-lo a se envolver em um conflito militar direto com enormes consequências humanas.
A possibilidade restrita do trumpismo de se consolidar como um sistema apoia-se na erosão dos direitos democráticos a tal ponto que permita se manter no poder por meio do uso da violência e da força. Esta é uma possibilidade real. Evidentemente, o desvelamento completo da natureza do poder estatal nesse contexto tenderia, de uma forma ou de outra, a gerar instabilidade social, que somente poderia ser contida por meio de ainda mais repressão.
O mais importante a ser recordado é que o futuro permanece em aberto. O fator decisivo na história continua sendo, como sempre, o que pessoas comuns fazem, por mais desanimador que o cenário possa parecer. O desastre anunciado do trumpismo pode ser interrompido se, parafraseando Walter Benjamin, a classe trabalhadora mundial encontrar uma forma de acionar o freio de emergência.
[1] Termo que se refere à invasão do Capitólio dos EUA em 6 de janeiro de 2021 por apoiadores de Donald Trump. O termo “Beer Gut Putsch” faz referência ao golpe fracassado de Hitler em 1923, na Alemanha, conhecido como “Beer Hall Putsch”. (Nota do Tradutor)
[2] One Big Beautiful Bill [OBBB] foi uma lei aprovada em 2025 nos EUA, reunindo série de cortes de gastos e isenções fiscais. (Nota do Tradutor)
[3] O movimento MAGA, abreviação de Make America Great Again (Tornar a América grande novamente), foi popularizado por Donald Trump durante sua campanha presidencial de 2016. O movimento acredita que os Estados Unidos foram uma grande nação que declinou devido a influências estrangeiras, assim defendendo políticas de protecionismo econômico, redução da imigração e a promoção de valores tradicionais americanos. Em julho de 2025, houve uma cisão dentro do MAGA sobre os arquivos relacionados a Jeffrey Epstein, acusado de crimes sexuais, já que parte dos membros exige transparência total e responsabilização, e outra parte é resistente à divulgação dos documentos. Já o Projeto 2025 é um plano elaborado por grupos conservadores próximos a Trump, que traça metas para um eventual novo governo iniciado em 2025. O projeto prevê a ampliação dos poderes presidenciais, desmantelamento de órgãos federais, cortes em políticas ambientais e a imposição de uma agenda social ultraconservadora. (Nota do Tradutor)
Traduzido de The buffoon, the empire, and the crisis, por Paulo Duque, do Esquerda Online