Ontem, tive uma experiência inusitada. Palestrei em um evento da CRB, Conferência dos Religiosos do Brasil, no Colégio Marista de Brasília. Por algum tempo, me senti transportado para meus 13, 14 anos, quando minha turma descobriu João 23 e a encíclica Mater et Magistra.
Antes do início da palestra, música, ritmos brasileiros e algumas freiras e padres dançando. Depois, um discurso de abertura relembrando a solidariedade da Igreja com os vulneráveis.
Fui aluno Marista dos 10 aos 15 anos. Na palestra, recordei alguns dos irmãos referenciais. Havia o Paulo Portugal, o caçador de vocações, de apelido Zátopek, pelo seu jeito rapidinho de andar. Emil Zatopek era um corredor tcheco, famoso na época por ter conquistado três medalhas de ouro nas Olimpíadas de Helsinque, em 1952
Até meus 13 anos, irmão Paulo tentou me levar para os Maristas. Cheguei a dar aulas de catecismo para crianças da periferia. Mas, depois, li a encíclica, li o Brasil Urgente, do frei Josafá (um dominicano subversivo), e abandonei o lacerdismo para me converter em um perigoso esquerdista de 14 anos.
No 1o e 2o ano o titular era o irmão Braz, de quem não guardo boas recordações. No 3o foi o irmão Nazário, idoso, mas com ideias fantásticas: ele queria promover a independência da República do Sul de Minas. Divergimos apenas em relação à capital. Ele queria que fosse, se não me engano, Patos de Minas, sua cidade. E eu não abria mão de Poços de Caldas.
A terceira lembrança foi do irmão José Bento, o Baiano, como o chamávamos, professor de matemática e titular do 4o ano do ginásio. Um dia, na aula de religião, ele me perguntou algo que constava do Catecismo Cauli – o livro sagrado dos Maristas. Eu não sabia. Imediatamente me colocou para fora da sala, abraçando um dos pilares do páteo:
- Seu Luis Nassif, me contaram que ontem, na Feira do Livro, o senhor comprou um livro do frei Josafá. E agora não sabe nada do catecismo Cauli.
Meu 4o ano do ginásio foi caótico. Notas baixas, a cabeça totalmente envolvida com as atividades do Grupo Gente Nova. Cheguei na prova final de matemática precisando de 9, uma nota que Baiano jamais havia dado. Mas consegui, demonstrando que, por trás da aparência carrancuda, havia um professor justo.
Mas havia Lino Teódulo, o reitor, terrível, que chamávamos de “vaca”, com todo respeito.
Quando mudei minha posição política, e até organizei a chapa vencedora das eleições no Grêmio Afonso Celso, a ira de Lino foi terrível. Eu era vice-presidente na chapa, mas não pude assumir quando descobriram que eu tinha apenas 13 anos, e a idade mínima exigida era 14.
Em um fim de semana, a Banda do Marista foi tocar em Ribeirão Preto. Eu era pifarista, mas resolvi ficar para poder preparar a lição de desenho, que teria que entregar na 2a para o irmão Bento. Na segunda, quando cheguei para a aula, me informaram que os membros da banda estavam liberados. Como não tinha ainda terminado minha lição, decidi voltar para casa. Aproveitei e pedi emprestado um pífaro de um colega.
À tarde, quando cheguei no Colégio para entregar o trabalho, havia um recado do meu pai, para ir para casa com urgência. Montei na minha bicicleta Caloi e fui. Chegando lá, estavam o reitor Lino, o novo chefe da banda, um irmão baixinho, e meu pai, todos com cara séria. Na época, eu estava em plena guerra com meu pai.
Lino foi lá para me acusar de ter roubado o pífaro. Reagi com indignação e a reação do meu pai encerrou a conversa:
- Acredito no meu filho e não temos mais o que conversar.
O episódio valeu, pelo menos, para minha reconciliação com seu Oscar.
E recordei também minha primeira briga jornalística, com o irmão Gonçalves Xavier. Ele havia sido reitor do Marista antes de eu entrar. E voltou em 1966, quando me preparava para ir para o 2o, científico. Era uma das referências nacionais dos Maristas.
Na época, com 15 anos, pedi para meu pai conversar com o padre Trajano, dono do Diário de Poços, para poder trabalhar lá nas férias. Fiquei como único redator, porque o anterior, o também gegenista José Roberto da Silva, havia se formado e ido estudar na Faculdade de Direito da USP.
Quando fui me matricular, me informaram que se não houvesse 15 alunos matriculados, não haveria 2o científico. Coloquei uma nota no jornal, para estimular os pais a correrem com as matrículas. Não se alcançou a meta pretendida, e os Maristas acabaram com o 2o científico.
Aí, o Gonça (como os alunos se referiam ao reitor) foi de classe em classe dizendo que a culpa era de um ex-aluno que colocara a nota no jornal, espantando os pais.
Na época, a União Municipal dos Estudantes tinha dois programas de rádio. No sábado à noite era na rádio Difusora. No domingo de manhã, na rádio Cultura. Fui nos dois e desanquei o irmão.
Quando saíi do programa da Cultura e cheguei em casa, minha mãe me recebeu com olhos vermelhos, choro de emoção por perceber que tinha criado um filho briguento como seu pai, meu avô Issa.
No decorrer da semana, o irmão Gonça fez jus à sua fama de grande articulador. Conversou com o tenente Hélio, maior autoridade militar da cidade, e os dois programas foram cancelados e a UME foi fechada.
Nos anos 90, Gonça veio a Poços para uma reunião com ex-alunos e insistiu para que eu fosse. Uma indisposição inesperada me impediu de conhecê-lo.
E havia o Rosa Branca, o irmão José Gregório, um multiartista incrível. Criador de abelhas, pintor, escultor. Na época estava em moda o padre Quevedo, com sua missão de combater o espiritismo. A prova maior da chamada materialização dos corpos, era uma luva de parafina, meio rústica. Dizia-se que o corpo se materializou, colocou a mão em uma recipiente com parafina, depois escafedeu-se. Deixando a luva como prova.
Pois Rosa Branca construiu duas mãos em parafina, tão bem feitas que parecia terem sido esculpidas em mármore de Carrara. E conseguiu o feito inédito de colocar impressões digitais nos dedos das duas mãos, as suas impressões digitais tanto na mão pequena, de menino, como na grande, de adulto.
Reencontrei José Gregório em uma ida a Poços, quando levei meu pai para rever os amigos. Voltei pela rua Paraíba e, perto do Colégio São Domingos, encontrei o irmão. Ele se preparava para ir a São Paulo lançar um dicionário tupi-guarani que preparara. Pediu meu endereço e do jornalista Luiz Fernando Mercadante, que também foi seu aluno. Estava hospedado no colégio das irmãs dominicanas. Não apareceu. Depois, soubemos que morreu no dia seguinte.
Depois da palestra, apareceu uma freira que estava no São Domingos justamente no dia da morte de José Gregório. E vários jovens irmãos Maristas, que conheceram, no fim da vida, os irmãos que eu mencionara.
Na palestra, me referi carinhosamente às “freirinhas” do São Domingos, inesquecíveis, que abrigaram o GGN. Lembrei-me, mas não confessei, que pulava o muro do São Domingo à noite, para fazer serenata para as internas. Cheguei a trabalhar como coroinha no colégio, só para encontrar a minha primeira candidata a namorada, que era de uma cidade do sul de Minas, acho que de Campanha. Só tivemos um encontro ao vivo no baile de formatura dela.
A irmã Dominique, a priora, era de uma família tradicional da França, mas colaboradora da República de Vichi. Uma tia chegou a dirigir uma possessão francesa na África. Trouxe duas sobrinhas francesas. A mais velha, a Marie France, tornou-se freira. A mais nova, a Marise era de uma simpatia sem igual. Foi minha parceira em um baile de carnaval. A música mais tocada era do Zé Keti. Admito que não tive fôlego para acompanhá-la a noite toda pulando.
Depois, voltou para a França, casou-se, teve uma filha lindinha. Anualmente ela mandava suas fotos para minhas primas Rosa e Cristina. Mas morreu com toda a família em um acidente trágico na África.
Revi Marie France quando passei por Paris, vindo de um Seminário em Salzburgo, minha primeira viagem internacional. Ela me encaminhou ao convento dominicano, onde pernoitei. Se não me engano, era lá que frei Tito passou seus últimos dias, assombrado pela imagem de Sérgio Paranhos Fleury.
Quando mencionei “freirinhas”, me referindo às irmãs do São Domingos, senti um mal estar no público. Aí, uma senhora me informou que quem tratava as freiras como “freirinhas” eram os padres mais velhos, com o intuito de depreciá-las. Imediatamente pedi desculpas, disse que tinha por hábito chamar minhas filhas de menininhas. Então o diminutivo era carinhoso. Mas, sabendo agora dessa disputa interna na Igreja, não usaria mais o diminutivo.
Esse é o dado interessante. Como em outros ambientes da sociedade brasileira, há os conservadores – em geral mais velhos – e os progressistas, atuando em comunidades pobres. Na maioria, são mulheres, as Freiras com F maiúsculo, garantindo a vocação da Igreja. E há a influência deletéria de influenciadores católicos, um padre que prega o armamentismo, macaqueia nos vídeos e tem grande influência sobre os jovens seminaristas.
Mencionei a importância da fé, como instrumento agregador, para mostrar que a solidariedade é uma força muito maior do que o individualismo exacerbado, vendida por neopentecostais e pela sociedade financeirização.
Minha pregação em favor dos desassistidos foi corroborada por dom Leonardo Ulrich Steiner, franciscano, gaúcho e desde 31 de janeiro de 2020 arcebispo de Manaus (AM). Em 27 de agosto de 2022, foi nomeado cardeal pelo Papa Francisco — tornando-se o primeiro cardeal da Amazônia
No intervalo, foi exibido um filme dos patrocinadores do evento, uma empresa de assessoria para temas espirituais, trabalhando com metas, com análises de cenário, usando as melhores ferramentas do mundo digital.
Falei do Relatório Rockefeller, de 1969, que convenceu o Departamento de Estado a estimular a vinda do neopentecostal ao Brasil. Mencionei o acordo João Paulo 2-Ronald Reagan, que acabou com a Teologia da Libertação. E usei adjetivos não muito sagrados para me referir a João Paulo 2o. Houve quem torcesse o nariz. Houve quem aprovasse a crítica, mas ressalvando que o adjetivo foi impróprio. Enfim, uma comunidade autenticamente Brasil contemporâneo.
Mas, por cima daquele mundo diverso, de conservadores, de vocações religiosas e de influenciadores, paira a sombra generosa do papa Francisco e de seu sucessor.
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