No início da pandemia da Covid-19, quando ainda nos encontrávamos diante do desconhecido, lembro-me do primeiro médico doente na China transmitindo um vídeo de alarme sobre a doença, momentos antes de falecer.

Quem não se recorda dos caminhões-frigorífico estacionados em frente aos hospitais na Itália, armazenando cadáveres que não cabiam mais nas UTIs. Naquele dia, diante da tevê, pensei: com todos os recursos disponíveis, uma mortalidade de 80% para uma síndrome respiratória grave na Itália não é admissível.

Achei que estivéssemos interpretando a doença de forma equivocada. A mortalidade esperada para uma síndrome respiratória aguda grave como as já enfrentadas seria de 10% a 20%. Pedi desesperadamente uma luz para entender melhor o que estava acontecendo e caí no choro. Estranhamente, não tive medo de morrer, mas de passar a doença para minha família. Fiquei quase um ano sem ver meus pais presencialmente.

Alguns dias depois dos acontecimentos na Itália, os primeiros casos chegaram ao Brasil. Tenho o privilégio de morar próximo ao hospital onde trabalho, e fui para lá a pé, tentando me fortalecer mental e espiritualmente. Nas ruas desertas, só os profissionais de saúde e os serviços essenciais.

Chegando ao pronto-socorro, atendi uma senhora com sintomas gripais que conversava normalmente, apesar de apresentar uma oxigenação extremamente baixa – era a chamada hipoxia feliz. Era fácil encher os pulmões de ar, mas o oxigênio não chegava ao sangue.

Essa senhora evoluiu com piora súbita e foi colocada em ventilação mecânica. Diferentemente do pulmão das síndromes respiratórias agudas convencionais, que é como uma esponja cheia de líquido e duro de insuflar, o pulmão inicial da Covid grave é fácil de encher de ar, mas o oxigênio não consegue passar dos saquinhos de ar (os alvéolos) aos capilares sanguíneos que os envolvem.

Examinei novamente a paciente e pensei: parece que os vasos do pulmão estão coagulados, com trombose. Nesse momento, o dedão da paciente (que hoje está bem e sem sequelas) ficou roxo e exibiu sinais de trombose. Conversei com os colegas da UTI e, além dos cuidados de ventilação e suporte clínico ministrados por eles, iniciamos uma hidratação vigorosa e uma medicação pela veia que combatia a coagulação.

A oxigenação da paciente melhorou rapidamente e ela seguiu melhorando até a alta. A partir desse fato, eu e meus companheiros de trincheira publicamos os primeiros casos tratados dessa maneira com sucesso e alertamos a comunidade internacional para a trombose como causadora da hipoxemia inicial e das diferenças necessárias no tratamento agudo desses pacientes em comparação com os da SARS convencional. Publicamos ainda estudos em colaboração com os patologistas que estudavam amostras dos tecidos pulmonares dos falecidos.

Estávamos em guerra: uma informação desse porte não poderia ser mantida em sigilo. Tratei de dar aulas online sobre os achados a quem pedisse, aqui e no exterior, depois de voltar da UTI e das enfermarias. Respondi à imprensa leiga também, afinal, quanto mais pessoas soubessem, menos gente morreria.

Mas foi aí que enfrentei uma grande rejeição de alguns colegas e fui denunciada ao Conselho Federal de Medicina por meus pares, por charlatanismo. Respondi a uma comissão e só não perdi o meu CRM porque nossos trabalhos foram citados na Science e na Nature alguns dias antes do meu julgamento. Tudo isso aconteceu durante um governo que disseminava notícias falsas, negava a ciência, falhava no fornecimento de oxigênio e insumos, adiava a chegada das vacinas e espalhava o caos.

Meu pai, que é professor de História, me dizia que era uma doença de regeneração do planeta e que não adiantava eu me desesperar, que fizesse a minha parte. Minha irmã me disse: “Calma, irmã! Faça o melhor que puder no seu microcosmo, que o macrocosmo aos poucos vai sendo atingido”.

E, apesar de tudo e de tantos contra ela, a ciência, no macrocosmo, venceu. Vieram as vacinas, depois antivirais que não deixam o vírus chegar à corrente sanguínea e, hoje, a doença grave trombótica é uma raridade. Ao lado das imagens de covas abertas aos montes, surgiram imagens da natureza se regenerando em todo o planeta, e nós chegamos a acreditar que mudaríamos como sociedade.

Tudo isso aconteceu há quatro anos. Já nos esquecemos? Quis trazer esta reflexão na última coluna do ano para fazer meu trabalho no meu microcosmo e convidar você a fazer o mesmo. Como diz André Trigueiro no livro A Força do Um, melhore a realidade e ajude a quem puder ao seu redor. •

Publicado na edição n° 1339 de CartaCapital, em 04 de dezembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Memórias da Covid’

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Last Update: 28/11/2024