Reconfigurações no mundo do trabalho: novas lutas e antigos desafios
por Lucas Zinet, Ederson Duda e Matheus Silveira de Souza
Veja bem, meu patrão, como pode ser bom
Você trabalharia no sol e eu tomando banho de mar
Luto para viver
Vivo para morrer
Enquanto minha morte não vem
Eu vivo de brigar contra o rei
(Caxangá – Milton Nascimento)
O 1º de maio, Dia Internacional dos Trabalhadores, é uma das poucas datas universais no calendário, comemorada em dezenas de países ao redor do mundo. Sua origem remete ao levante dos trabalhadores e trabalhadoras de Chicago, reprimidos duramente por lutarem pela redução da jornada de 14 horas para 8 horas diárias. Resgatar sua memória nos ajuda a compreender as lutas que nos antecederam e criaram as condições minimamente dignas de trabalho ao longo do último século.
Embora conquistas tenham sido alcançadas, a luta por melhores condições de trabalho permanece atual, ocupando o debate público e a agenda de movimentos sociais. No Brasil, por exemplo, o movimento liderado por Rick Azevedo reivindica o fim da escala 6×1 e o direito a uma Vida Além do Trabalho (VAT). As reivindicações do VAT explicitam que a sociedade estruturada pelo capitalismo tardio obriga milhões de pessoas a dedicarem toda a sua existência ao trabalho, impondo jornadas exaustivas, que esvaziam a experiência de vida, sem espaço para lazer, convívio com a família e cuidado com a saúde.
Na atualidade do capitalismo plataformizado, a precarização laboral é o que define as relações no mundo do trabalho. O trabalho intermitente, o trabalho por plataformas digitais e o trabalho uberizado crescem de maneira acelerada no Brasil e no mundo. Essas são ocupações cuja singularidade está no fato de não possuírem direitos, seguridade social e com jornadas ilimitadas – muitas vezes em escalas 6×1. Pesquisas revelam que os entregadores de aplicativo, por exemplo, além de serem remunerados sob demanda, trabalham mais de 12 horas por dia para obter uma renda mínima[1], frequentemente insuficiente para cobrir as despesas mais básicas.
O que estamos presenciando, portanto, é a utilização e instrumentalização de tecnologias do século XXI para restaurar relações de trabalho típicas do início do século XIX, caracterizadas pela ausência de direitos e proteção social. No Brasil, as políticas de austeridade e a contra-reforma trabalhista de 2017, fruto do golpe-parlamentar de 2016, intensificaram ainda mais a precarização do trabalho. A informalidade tornou-se norma, por meio da institucionalização da pejotização, da terceirização e contratos intermitentes. Os sindicatos – ferramenta histórica de defesa dos trabalhadores -, foram profundamente fragilizados com algumas alterações legislativas.
Nesse contexto adverso, em que a lógica da superexploração do trabalho assume uma falsa aparência de autonomia e empreendedorismo, jornadas de trabalho em regimes exaustivos de doze, catorze horas de trabalhos numa escala 6×1 tornaram-se naturalizadas. Por isso, a luta pela redução da jornada de trabalho continua sendo uma pauta atual para a classe trabalhadora, já que está no centro da disputa entre capital e trabalho.
Trabalhos precarizados e corpos exauridos: a nova morfologia da classe trabalhadora
A luta do movimento VAT, juntamente com a mobilização do Breque dos Apps, são expressões de uma nova onda de reivindicações da classe trabalhadora. São expressões, também, de personagens já há muito tempo em cena, mas com novas formas organizativas e novas pautas: uma classe trabalhadora dos novos tempos, que tem se organizado pelas redes sociais e por fora dos aparelhos tradicionais, formada por mulheres, pessoas negras, periféricas e LGBTQIA+, que vivem na pele as contradições mais brutais da produção capitalista.
Esta classe trabalhadora concreta que está em luta é, ao mesmo tempo, a que está no centro dos acontecimentos políticos mais dinâmicos e ofensivos no último período. Uma classe que se faz, desfaz e refaz, em meios as contradições e as determinações sociais impostas pelo capital, que a depender da disposição das lutas mais imediatas, podem se transformar em lutas políticas organizadas.
Nesse sentido, o Breque Nacional dos entregadores de aplicativos[2], por melhores condições de trabalho, e a mobilização dos trabalhadores do setor de serviços e comércio organizados pelo VAT, contra a escala 6×1, são manifestações concretas da nova morfologia da classe trabalhadora, cujas transformações em seu modo de ser refletem as mudanças profundas ocorridas no mundo do trabalho nas últimas décadas.
É preciso ter em mente que as políticas neoliberais e a reestruturação produtiva implementadas na sociedade brasileira a partir dos anos 1990 impactaram significativamente as relações de trabalho e as formas de organização da classe trabalhadora, como os sindicatos. Décadas de hegemonia neoliberal tiveram como resultado o desmonte do Estado, com o fechamento de dezenas de agências públicas e a exoneração de milhares de servidores. A abertura econômica para empresas estrangeiras elevou o número de desempregados, intensificando o processo de desindustrialização interna e a consolidação de formas precárias de contratação. Esse movimento contribuiu para a reconfiguração da estrutura ocupacional brasileira, que hoje está profundamente concentrada no meio urbano, cujas ocupações são em sua maioria ligadas ao setor de serviços e comércio, que emprega mais de 70% da população[3] – que são, em sua maioria, empregos com baixa remuneração e alta rotatividade.
A introdução das tecnologias da informação e comunicação (TICs), robótica, automatização e inteligência artificial (IA) nas relações de produção transformaram radicalmente o mundo do trabalho. As plataformas digitais e os algoritmos passaram a ditar o ritmo, conformando novas subjetividades e experiências no modo de ser dos trabalhadores. Por meio de discursos de “gestão participativa”, “boas práticas”, “produtividade” e “gestão por performance”, opera-se uma forte desorientação e desorganização da classe trabalhadora.
O salto tecnológico criado pela humanidade, em vez de libertar o ser humano do trabalho repetitivo, incessante e precário, intensifica o controle e a exploração laboral. Enquanto o desenvolvimento tecnológico aumentou a produtividade capitalista exponencialmente, os ganhos não foram socializados e o “moinho satânico” do capital continua a moer os trabalhadores de maneira incomensurável. Com a regressão dos direitos trabalhistas e o aumento das jornadas exaustivas, as desigualdades socioeconômicas têm atingido níveis alarmantes neste início de século XXI. Conforme Thomas Piketty (2014), estamos nos aproximando das desigualdades típicas do capitalismo do século XVIII, com a riqueza cada vez mais concentrada nas mãos de poucos bilionários.
Essa forma de estruturação do mundo do trabalho possui impactos profundos na saúde mental dos trabalhadores. Em 2024, o Brasil registrou quase meio milhão de afastamentos por transtornos psicológicos – o maior índice em dez anos, segundo dados do Ministério da Previdência Social. O aumento de 68% no número de licenças médicas por burnout, depressão e ansiedade expõe uma sobrecarga insustentável. O assédio moral, presentes em diferentes ambientes laborais, contribui para aprofundar esses danos à saúde dos trabalhadores.
Nessa vida de trabalho intermitente e uberizado, a qualquer momento o trabalhador pode ficar sem trabalho, no desalento. Devemos refletir, portanto, o impacto dos processos de precarização do trabalho e da vida na formação da subjetividade dos indivíduos, cujo sofrimento psíquico se coloca como resultado da naturalização da precarização da vida no e para além do trabalho.
Classe trabalhadora e crise ambiental
Neste cenário, é preciso considerar ainda que o capitalismo não explora apenas os trabalhadores – opera também a predação da natureza, ameaçando o futuro da humanidade. O capitalismo enfrenta, assim, uma convergência de crises que tem na crise ambiental uma de suas principais expressões.
Trata-se de um desafio profundo para as organizações da classe trabalhadora a formulação teórica e ação prática para superação do aquecimento do planeta, da destruição dos biomas, da mitigação de eventos climáticos extremos e todo um conjunto de dinâmicas ecológicas que emanam das relações de produção do capital.
A alteração das relações de produção não é mais (nem nunca foi) o único desafio das trabalhadoras e trabalhadores em luta, é central também a mudança nas formas de produção e destruição de dinâmicas ecocidas típicas do desenvolvimento do capitalismo.
A classe trabalhadora não pode ficar a margem dessa luta. A mesma lógica que impõe regimes de trabalho exaustivos e a escala 6×1 é a que consente com a destruição do planeta.
Esse desafio exige, portanto, que as tradicionais organizações da classe trabalhadora intensifiquem e aprofundem trocas com outros setores indígenas, quilombolas e toda uma gama de lutadores socioambientais que há muito atacam as engrenagens ecocidas do capital.
Organizar a revolta: a autorganização da classe trabalhadora
Historicamente, a luta da classe trabalhadora tem se estruturado em torno da conquista de direitos e da resistência à precarização. As manifestações por melhores salários, pela redução das horas de trabalho sem redução de salário e pela liberdade de organização expressam a prática concreta da luta de classes contra as determinações do capital.
E é exatamente nesse contexto que a luta protagonizada pelo VAT e pelos entregadores de aplicativos podem assumir a potencialidade de mobilização mais ofensiva da classe trabalhadora – ainda que atendo-se às pautas mais imediatas -, pois carregam em si uma potência transformadora.
Por isso, neste mês que marca o Dia Internacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras, é necessário reconhecer que, em sua nova fase industrial – caracterizada pelas TICs, IA e as plataformas digitais -, o proletariado tem avançado tanto quantitativamente como qualitativamente em sua autorganização e consciência de classe, ainda que esta seja, muitas vezes, uma consciência fragmentada e contingente.
Nesse sentido, fortalecer essas lutas dinâmicas da classe trabalhadora, como as ações dos entregadores de aplicativos e do movimento VAT, ou mesmo a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 8/25, apresentada pela Deputada Federal Érika Hilton (PSOL-SP) e o Plebiscito Popular 2025, que tem como objetivo tributar os super-ricos, reduzir a jornada de trabalho e abolir a escala 6×1, além da lutas socioambientais, representa uma aposta estratégica para a reorganização da unidade da classe trabalhadora. Trata-se, portanto, de um caminho necessário para o reequilíbrio de forças frente ao avanço da extrema direita e seu projeto antissocial, que ataca frontalmente os interesses dos trabalhadores. O que a memória do Dia Internacional dos Trabalhadores reforça é que a classe trabalhadora só consegue avançar na constituição de direitos quando organiza-se, quando sua autorganização é forte e se mobiliza – mobilizando simultaneamente a sociedade.
Lucas Zinet é doutorando em Direito pela USP.
Ederson Duda é doutorando em Ciências Sociais pela Unifesp.
Matheus Silveira de Souza é doutorando em Sociologia pela Unicamp.
[1] IBGE. PNAD Contínua Teletrabalho e trabalho por meio de plataformas digitais. 2023.
[2] Sobre a mobilização nacional do Breque dos apps, ver Gonsales (2025). Disponível em: <https://www.boitempoeditorial.com.br/blog/2025/04/03/breque-dos-apps-a-ascensao-do-novo-proletariado-de-servicos/?srsltid=AfmBOopQvb4AibFGq2wJ236aYL8qnmJwxT-ALOIqiCnYsrksnib2Vfkn>.
[3] IGBE. PNAD Contínua 3º trimestre de 2023. 2023.
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