No Brasil são produzidas, anualmente, mais de 8,2 bilhões de peças de vestuário e 4 milhões de toneladas de têxteis. Só no processo de confecção, entre 15% e 30% dos tecidos se perdem em resíduos ainda na etapa do corte. Mesmo as peças prontas carregam um destino inevitável: em algum momento, se tornarão lixo têxtil. O resultado é um “ponto cego”, historicamente negligenciado pela indústria, quando falamos sobre o fim do ciclo de vida das roupas.
A reciclagem brasileira dá conta de apenas 20% dos descartes têxteis. Sem soluções públicas e privadas capazes de lidar com a escala do problema, a reciclagem têxtil ganhou espaço como “salvação tecnológica”. Afinal, parece ser a única saída em escala industrial para o problema.
Porém, ela enfrenta complexidades em todos os níveis: da coleta e triagem à mistura de fibras, descaracterização, processamento e reinserção em novos ciclos. Além disso, o que se reaproveita dificilmente volta a ser roupa, e apenas 1% dos resíduos retornam como vestuário, enquanto a maior parte é transformada em estopas, enchimentos, isolamentos – em um processo conhecido como downcycling – ou mesmo incineradas.

Gráfico: Etapas operacionais na reciclagem de resíduos têxteis de pós-consumo
Circularidade e Reciclabilidade
Reciclagem não é sinônimo de Circularidade. Uma moda circular começa muito antes do descarte: na forma como desenhamos, consumimos, usamos, reparamos, compartilhamos roupas, estendemos o uso e fechamos o ciclo. A reciclagem deve ser vista como uma das alternativas, mas nunca como pilar central de um modelo que pretende ser regenerativo.
Isso porque, mesmo em um cenário ideal, a reciclagem jamais daria conta da velocidade e do volume de produção globais. Apostar na reciclagem como solução central é ignorar que a moda não consegue, hoje, lidar com a quantidade de resíduo têxtil produzida anualmente. É, também, correr o risco de transformar a reciclagem em licença para manter um sistema extrativista, que consome recursos naturais e humanos em ritmo insustentável, em um momento em que já ultrapassamos diversos limites planetários.

Gráfico: Fim do ciclo de vida para resíduos têxteis de pós-consumo
A circularidade, por sua vez, está diretamente relacionada à diversidade de soluções para o fim do ciclo de vida das roupas. A multiplicidade de caminhos possíveis reforça que não existe uma única solução; pelo contrário, a integração de diferentes práticas aumenta significativamente o impacto positivo sobre o meio ambiente e sobre a sociedade. Essas práticas podem atuar em várias etapas da cadeia de suprimentos da indústria têxtil, atualmente estruturada em um modelo linear.
No pós-consumo, por exemplo, surgem alternativas que vão além da reciclagem. Esse conceito pode ser visualizado no gráfico-funil sobre circularidade, que mostra como múltiplas estratégias contribuem para prolongar a vida útil das peças, além de postergar e reduzir os impactos ambientais negativos.
Esse debate não é exclusivo do Brasil, mas, para um país que ocupa posição estratégica no cenário mundial, sendo a maior e mais completa cadeia têxtil do Ocidente, a ausência de políticas públicas robustas e da ação do próprio setor têxtil tornam o atraso ainda mais grave.
Se a reciclagem é um remédio paliativo para um sistema doente, a circularidade é a mudança que pode devolver vitalidade à moda. O Brasil tem a potência criativa e produtiva para liderar esse movimento. Mas, para isso, não podemos acreditar que a reciclagem vai salvar a moda e começar a investir na potência da economia circular e do consumo consciente.
É nesse contexto que ganham relevância iniciativas como o Setembro de Segunda Mão, promovido pelo Fashion Revolution Brasil. A campanha vai além de estimular a prática do reuso de peças, e assume um papel central na educação para a circularidade. Ao provocar reflexão crítica, ela forma não apenas consumidores mais atentos, mas cidadãos conscientes do impacto social e ambiental de suas escolhas. Cada peça que volta a circular evita a geração de novos resíduos e reduz a pressão por recursos naturais, traduzindo, na prática, os princípios da moda regenerativa.
Enquanto seguimos celebrando o título de maior e mais completa cadeia têxtil e de confecção do Ocidente, é preciso questionar: podemos realmente nos considerar completos se ainda não solucionamos o fim do ciclo de vida das roupas que produzimos?