Publicado originalmente em 1o de novembro de 2020
Meu primeiro contato com a CPI dos Precatórios foi um pouco antes de estourar. Antonio De Salvio, dono de uma assessoria de imprensa, levou Fabio Nahoun para conversar com diversos jornalistas em São Paulo e Brasília. Nahoun era dono do pequeno Banco Vetor, diretamente envolvido nas operações.
Nahoun foi em meu escritório e anotei a conversa em uma agenda Palm com teclado, que usava na época. Terminada a conversa, as anotações ficaram gravadas, mas deixei o assunto de lado por alguns dias. Até que o caso estourou e passou a merecer acompanhamento pesado da mídia brasiliense.
Em todas as reportagens, o grande vilão da história era o Banco Vetor. Consultei várias fontes do mercado para entender melhor a história. Todas me diziam que o Vetor era um banco inexpressivo, sem fôlego para aventura de tais proporções.
Voltei a consultar minhas anotações, da conversa com Nahoun, para entender melhor o caso. Na conversa, Nahoun explicava parte das operações, tidas por ele como legais, e, em outras, fazia questão de dizer que não era o organizador das operações, mas apenas um elo.
De fato, a falta de conhecimento e a busca de sensacionalismo fazia a cobertura misturar tudo, criminalizar todas as operações, mesmo as habituais de mercado. Com isso, dificultava enormemente a identificação dos pontos centrais da operação, do golpe dos precatórios aos esquemas de lavagem de dinheiro.
A indústria dos precatórios surgiu a partir do momento em que se descobriu uma brecha na Constituição para aumentar a dívida pública. Depois da consolidação das dívidas estaduais, no início do Plano Real, os estados ficaram proibidos de emitir novos títulos. Consistia nas dívidas pré-Constituinte, que poderiam ser enquadradas como precatório como lastro para uma nova emissão de dívidas estaduais. Montava-se a operação e inventavam-se dívidas inexistentes que eram atualizadas e incluídas no pacote.
Depois, os títulos circulavam pelo mercado, a preços baixos, até que na ponta final aparecia uma grande instituição e os adquiria por preços valorizados. Era assim que se dava a lavagem de dinheiro.
Na cobertura da semana, havia algum espaço para as falas de Nahoun, que protestava inocência e mostrava que várias operações, apresentadas como irregulares pela mídia, na verdade eram operações normais de mercado.
A CPI começou a toda, com a participação expressiva de três senadores, Espiridião Amin e Vitor Kleinubing, de Santa Catarina, e Roberto Requião, do Paraná. Requião, pelo seu histórico contra a corrupção; Amin e Kleinubing por oportunismo político, tentando liquidar com o então governador de Santa Catarina, Paulo Afonso Vieira.
Percebi que, para obter informações de Nahoun, precisaria demonstrar discernimento, que não iria atrás do estouro da boiada da mídia. Assim, em uma 6a feira publiquei uma coluna, na Folha, esclarecendo algumas das operações do Vetor, que a mídia tratava como escândalo. No domingo, dia de maior tiragem da Folha, publiquei outro artigo, mostrando quais as operações em que havia manipulação e dolo por parte do Vetor.
Durante a 6a, recebi alguns e-mails de leitores dizendo que Amin e Requião me haviam convocado para depor na CPI. Fiquei honrado, julgando que a intenção seria esclarecer o funcionamento do mercado financeiro, especialmente dos sistemas de lavagem de dinheiro, colocando um pouco de ordem na zorra de vazamentos inconsistentes da CPI.
No domingo, recebi um telefonema de Nahoun, agradecendo as explicações de 6a e admitindo as irregularidades de domingo. Era uma confissão. Tentei entender a lógica e ele explicou. Estava sendo massacrado pela mídia, toda noite o Jornal Nacional o colocando como o maior vilão do país, afetando a vida familiar, especialmente a mãe idosa. Ela se dispunha a tudo para sair do centro da cobertura inclusive – e mais relevante – revelar as formas de atuação da organização criminosa. Ele admitia ter participado das jogadas, mas era apenas uma peça. O verdadeiro organizador era Paulo Maluf.
Aconselhei-o a procurar Requião e contar a história. Afinal, pelo que diziam algumas notas de jornal, Kleinubing e Espiridião estavam fazendo reuniões informais, não registradas, com representantes de grandes bancos envolvidos.
Ele topou, desde que eu participasse e não tivesse a presença de Kleinubing:
– Esse não é confiável. Só quer fazer jogadas política.
De fato, pelo que me contou depois, o governador de Santa Catarina, Paulo Vieira, tinha se comportado com retidão, só incluindo de fato dívidas reais. Ao contrário do neto de Miguel Arraes, Eduardo Campos – na época, ainda um assessor do avô pouco conhecido -, mas que fora poupado por Requião.
Na segunda de manhã, recebo telefonema de Espiridião e Requião, se desculpando. Como assim, por que se desculpando? Primeiro Espiridião, depois Requião, explicaram que minha convocação era devido à suposta defesa que eu fizera de Nahoun na coluna de 6a feira. Fiquei indignado. Então a intenção era me retaliar? Requião se desculpou dizendo que eles haviam identificado um contrato de Nahoun com jornalistas, em que havia uma taxa de sucesso, caso ele não fosse indiciado pela CPI. Sem investigar nada, me colocaram, ao lado de Joelmir Betting, na lista de suspeitos. Quando saiu o artigo no domingo, eles entenderam minha intenção. Tempos depois, descobriram que os tais jornalistas eram dois setoristas inexpressivos, que cobriam o Senado.
Na conversa, sugeri a Requião ouvir Nahoun . Disse-lhe que ele fazia parte da organização criminosa, mas era o elo mais fraco portanto mais propenso a falar. E poderia dar as pistas para pegar Maluf, o mais notório e blindado dos políticos da República. Requião topou recebê-lo.
Avisei Nahoun e marcamos o dia. Para me prevenir, convidei duas pessoas como testemunha. Uma, a jornalista Monica Bérgamo, que começara a se destacar como repórter de Paulo Henrique Amorim na TV Bandeirantes. Outra, o também senador José Serra, sobre quem, até então, me iludira.
A reunião foi no apartamento de Requião. Nela insisti para que Nahoun falasse do envolvimento de Maluf. O homem das contas na Prefeitura era Wagner Ramos, funcionário de carreira. E tentava-se atribuir a culpa ao Secretário de Finanças, Celso Pitta. Nahoun estava reticente em abrir o jogo contra Maluf. Tentei uma pergunta:
– Com quem Wagner Ramos tratava? Com Celso Pitta ou acima dele?
– Acima dele.
Pronto! Estava dada a senha para se chegar a Maluf. Combinamos manter o conteúdo da conversa em segredo, até juntarmos mais elementos sobre Maluf.
A história era simples. Empreiteiros mostraram o mapa da mina para Maluf. Ele aplicou a operação em São Paulo. Para ser aprovada, tinha que passar pela Comissão de Finanças do Senado, presidida pelo notório Gilberto Miranda – que, juntamente com Maluf, tinha participado da elaboração da fakenews mais notória da época, o Dossiê Cayman.
Depois de descoberta a jogada dos precatórios, Maluf ofereceu pra alguns prefeitos aliados. Percebendo que era um grande negócio, resolveu terceirizar. E só aí convidou Nahoun para ser o vendedor das manobras. Nahoun conseguiu dois grandes clientes, com os governos de Pernambuco e Santa Catarina, além de clientes menores.
Terminada a reunião, Requião me convidou para desfilar com ele no Senado. Fui, depois peguei o avião de volta a São Paulo. Cheguei em casa, liguei o computador e a reunião já tinha vazado para a imprensa.
Estávamos na Semana Santa. Na 5a viajaria com a família para o litoral. Na 4a à noite, Monica me ligou:
– O Paulinho vai implodir o Maluf.
Falava de Paulo Moreira Leite, Secretário de Redação da Veja. Disse-me o que ele pretendia narrar da conversa, que não batia com o que ocorrera. Liguei para Paulinho e lhe disse para não embarcar nessa, que a versão estava errada.
– Tenho uma boa fonte, alegou ele.
A “boa fonte” dissera que Nahoun afirmara taxativamente que Maluf era o cabeça da organização. Não era verdade. A única indicação de Nahoun, na conversa, era de que Wagner Ramos tratava com alguém “acima de Pitta”, que obviamente era Maluf. Como não havia mais sigilo da reunião, escrevi uma coluna e mandei para Paulinho naquela noite. Expliquei-lhe que não me baseava em fonte nenhuma: eu era a fonte.
No sábado, compro a Veja e estava na capa: “Implodido esquema de Maluf”. E com as tais afirmações taxativas de Nahoun.
Maluf estava em Paris.
No sábado de manhã recebo telefonema de Nahoun dizendo que meu artigo estava correto, mas que foi obrigado a soltar uma nota oficial desmentindo a Veja,
De posse da nota, imediatamente Maluf convocou todos os correspondentes das principais redes de televisão e dos jornais e deu várias entrevistas, em todas elas me espinafrando, dizendo que Nahoun havia me desmentido.
Tempos depois, soube que a tal fonte de Paulinho será José Serra. Ali começou a cair a minha ficha sobre o mais desleal político que conheci em toda minha carreira. Até então, o tinha em alta conta.
Nas semanas seguintes foi uma luta para retomar o tema. Fiz uma série de matérias didáticas, explicando todas as formas de esquentamento de dinheiro utilizado pelo mercado, desde as operações zé-com-zé no mercado, até as vendas de títulos estaduais para grandes bancos.
Ao mesmo tempo, consegui uma boa fonte entre os doleiros, Najun Turner, que havia sido o doleiro da Operação Uruguai, no governo Collor. Najun me procurou a me passou a estrutura do mercado de doleiros nos Estados Unidos, o banco Morgan, que concentrava todas as contas de doleiros, funcionando como caixa de compensação. Deu-me o nome da portuguesa que atendia as ligações, dona Maria, e até o telefone de contato.
Indaguei dele com a razão dessa colaboração, já que ele também era doleiro. A explicação foi curiosa.
– Nós somos consultores fiscais, ajudamos a reduzir a carga de impostos das empresas. Mas se entrar um dólar que seja de tráfico ou corrupção política, atrapalha todo nosso esquema.
A sequência de matéri