A ameaça da oposição, na sexta-feira 25, de travar o projeto do governo de isenção do Imposto de Renda para quem ganha até 5 mil reais foi uma resposta à decisão tomada dois dias antes pelo presidente da Câmara, Hugo Motta, de não pautar a urgência da Lei da Anistia. Caso a obstrução bolsonarista se afirme, a agenda econômica seria colocada em segundo plano. Debates infindáveis, em torno do perdão indefensável, iriam se impor. A oposição perdeu a primeira batalha, mas o desfecho do combate tem várias etapas e está longe do fim. O confronto marca um aumento da temperatura na discussão de uma das propostas mais importantes do governo. Com aprovação de 68% da população, segundo pesquisa, o projeto de isenção de IR é o mais popular do terceiro mandato de Lula.

A medida teria enorme alcance, anotam o economista Dayson Pereira Bezerra de Almeida e o especialista Hélio Henrique Diógenes Rêgo, ambos consultores da Câmara dos Deputados, em estudo sobre os efeitos econômicos, fiscais, distributivos e de bem-estar. Seria uma forma de ampliar “a renda disponível das famílias de baixa renda, o que deve estimular a demanda impulsionando o consumo agregado em 10,3 bilhões de reais, no curto prazo, especialmente nos setores varejistas e de serviços”, estimam os autores do trabalho. O Projeto de Lei visa aumentar a progressividade do IR, reduzir a desigualdade de renda e proporcionar um aumento de 30% na progressividade do imposto. “A reforma”, ao beneficiar quem pertence a grupos de mais baixa renda, “pode gerar um aumento de 3,8% no bem-estar agregado da sociedade”, escrevem.

O secretário de política econômica do Ministério da Fazenda, Guilherme Mello, discorreu sobre a proposta de governo em audiência pública na Câmara Municipal de Goiânia. A ideia é aumentar para 5 mil reais o limite autorizado atual, de 3.036 reais, o equivalente a dois salários mínimos, o que beneficiará cerca de 10 milhões de trabalhadores. Quem ganha entre 5 mil e 7 mil reais, caso o projeto seja aprovado, também pagará menos imposto, com aplicação de descontos progressivos. Os rendimentos de 5,5 mil reais por mês terão 75% de desconto, as rendas de 6 mil reais obterão 50% de desconto e aquelas de 6,5 mil reais poderão diminuir 25%. Para compensar a perda de arrecadação, o governo sugere tributar rendas anuais entre 600 mil reais e 1,2 milhão, de forma progressiva, com alíquotas efetivas entre 2,5% e 10%. A tributação da renda dos ricos atingirá 141,4 mil contribuintes, 0,13% do total. Segundo o governo, esse público paga atualmente uma alíquota efetiva média de 2,54%.

Aposta. Lula e Haddad tentam destravar o projeto, apoiado por 68% da população – Imagem: Evaristo Sá/AFP

O Brasil, afirmou o secretário, é um país que “aumenta a desigualdade quando tributa e reduz quando gasta, por meio do financiamento da saúde e educação pública e dos programas de transferência de renda”. Na Europa, acrescentou, as nações também combatem a desigualdade por meio dos gastos, mas a maior parte da redução ocorre via sistema tributário. “Se quisermos deixar de ser um dos paí­ses mais desiguais do mundo, temos de mudar nosso sistema de tributação, pois é ele que limita nossos avanços para uma melhor distribuição de renda.”

Caso o projeto seja aprovado, “um motorista que ganha 3.650,66 reais por mês vai sentir o desconto no bolso. No fim do ano, são 1.058,71 reais a mais. Já um professor com salário mensal de 4.867,77 ­reais terá uma economia anual de cerca de 3.970,18 reais”, exemplifica a cartilha do governo sobre o tema. “Não estamos falando de pessoas que estão no andar de cima, são as da cobertura”, comparou o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, ao se referir ao número muito limitado de indivíduos de altíssima renda chamados a contribuir com algum pagamento de imposto. “Não estamos propondo 30%, 40% de Imposto de Renda, que são alíquotas comuns na União Europeia, mas de 10% sobre dividendos”, frisou o ministro.

A compensação com o imposto para rendas mais altas, acrescentou o ministro, é “justa” e não existem opções disponíveis. “Na minha opinião, encontrar uma solução mais justa do que essa, eu não consigo neste momento… até porque não conheço uma proposta alternativa.” O PP, de Arthur Lira, relator do projeto na Câmara, chegou a anunciar a sugestão de redução da faixa dos afetados pela tributação mais alta para quem ganha a partir de 150 mil reais, em vez de 50 mil, com outras medidas de aumento de arrecadação, para compensar a respectiva redução da receita tributária. “Insisto em dizer”, prosseguiu Haddad, “nós somos uma das dez maiores economias do mundo, e estamos entre as dez piores em distribuição de renda. Não é compatível”, declarou durante debate com políticos.

Quem ganha mais paga, em média, 2% de IR. Um PM, 9,8%

O caminho a ser percorrido pela proposta é, entretanto, longo e acidental e não é segredo a resistência de uma parte específica dos interesses econômicos representados no Congresso. Segundo especialistas, pode ser que, no decorrer das negociações parlamentares, se altere a forma de compensação. O tema é explosivo, mostra a resistência da Febraban, a federação dos bancos, diante da possibilidade, aventada por Lira, de uma sutil elevação do pagamento de tributos pelas instituições financeiras. “Não suportamos mais pagar impostos”, reagiu o presidente da entidade, Isaac Sidney Ferreira.

O secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Dario Durigan, ressaltou, entretanto, que “os mais ricos, que já pagam o mínimo de 10% de IR, nada pagarão a mais, apenas quem não chega a esse mínimo terá de complementar o tributo pago. Além disso, a poupança, a herança, os títulos e os ganhos de capital estão fora da proposta”.

Não poucos contestam que se onere tão pouco quem ganha tanto. O economista Everton Sotto, coordenador da Faculdade de Administração, Ciências Contábeis e Ciências Econômicas da Universidade Federal de Goiás, disse na audiência pública da Câmara municipal esperar alíquotas maiores na reforma para quem ganha mais, pois, “da forma como está, os mais ricos passarão a pagar a alíquota efetiva que os trabalhadores já pagam”.

Resistência. O consumo agregado pode ter um incremento de 10,3 bilhões de reais com a reforma do IR, mas o lobby empresarial no Congresso joga contra – Imagem: Vini Loures/Agência Câmara e Redes Sociais Prefeitura de Caruaru

Outra alternativa para não ferir a elevada sensibilidade pecuniária do sistema financeiro seria reduzir os escandalosos subsídios às empresas, de 621 bilhões de reais previstos para 2026, segundo cálculo do governo. Não há, entretanto, quem identifique boa vontade por parte dos donos do dinheiro, que controlam o Parlamento, no sentido de abrir mão de ao menos parte do escandaloso privilégio e reduzir esse vexame histórico.

Uma parcela ínfima de contribuintes vive uma espécie de paraíso fiscal. O reduto de felizardos fica no topo do topo da pirâmide de distribuição de renda, ou na cobertura, para usar a comparação feita por Haddad, e paga uma alíquota efetiva semelhante à de quem está na faixa do meio, diz Rêgo. “Isso ocorre porque, com o aumento da renda, a composição passa a mudar. Quem está no topo da distribuição passa a ter parcelas não tributáveis ou isentas que se tornam cada vez mais significativas. Isso leva à redução abrupta da alíquota na faixa extrema da alta renda e é o problema que o projeto busca atacar”, sublinha. “Um professor do ensino médio paga 9,6% na média, segundo os dados de 2022, um policial militar em torno de 9,8%, e quem está no último porcentual está pagando um pouco mais de 2%.”

Os rentistas são um alvo habitual de críticas justificadas à concentração da renda, mas, em termos de tributação, pagam mais que os beneficiários com a recolha de dividendos das empresas. Quem é rentista e aplica em Letras de Crédito do Agronegócio, ações e outros títulos, públicos ou privados, paga imposto de 15% a 20%. Só quem pagará imposto, entre as pessoas físicas situadas no topo da pirâmide, são os detentores de altas rendas remuneradas principalmente com dividendos, esclarece José Evande de Araújo, consultor-geral da Câmara e consultor legislativo da área de direito tributário e tributação. “Um advogado de um grande escritório recebe um pró-labore que, na comparação com os lucros e dividendos auferidos, é pequeno. Um acionista de empresa também. É a faixa do 1%.”

O governo busca atenuar o efeito regressivo do sistema tributário

Segundo o projeto, haverá retenção na fonte de 10% sobre dividendos superiores a 50 mil reais por mês, recebidos por contribuintes domiciliados no Brasil. Quanto às pessoas físicas ou jurídicas com endereço no exterior, a tributação incidirá sobre dividendos de qualquer valor. “Quem é contra a nova proposta de regra, argumenta que no Brasil tributa-se pouco a pessoa física, mas muito a pessoa jurídica, com imposto sobre a renda e Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido, e a soma é maior que no resto do mundo. Por esse motivo, o governo inseriu uma trava: a tributação mínima sobre dividendos na pessoa física não será superior a 34% nas empresas não financeiras ou 40% a 45% nas empresas financeiras. Se superar, haverá restituição ou crédito no ajuste ­anual da pessoa física. Isso rebate o argumento de que há uma tributação maior do que aquilo que já foi feito”, destaca Araújo.

Na situação atual, o Brasil, diante do resto do mundo, fica muito mal na fita, ressalta o economista Pedro Garrido, consultor legislativo da área de política e planejamento econômico, desenvolvimento econômico e economia internacional. Em comparação com países mais ricos, da ­OCDE, aqui se paga menos imposto. Na carga tributária total, que inclui taxações diretas e indiretas, o Brasil está, entretanto, próximo da OCDE, só que a incidência do IR é menor. Isso também pode ser visto na questão da alíquota máxima, de 27,5%, bem abaixo daquela das nações desenvolvidas. A base de incidência do IR no Brasil é menor que aquela dos países desse bloco. Considerando que a carga tributária é muito próxima, há uma incidência maior sobre bens e serviços, por meio de impostos indiretos, que pune a população mais pobre, que gasta os rendimentos em produtos e serviços. Do ponto de vista da renda, o Brasil tributa proporcionalmente menos. Do ponto de vista da tributação de bens e serviços, ela é regressiva, pois os produtos consumidos pela camada mais pobre são mais tributados. É outra questão a ser discutida no âmbito do projeto.

Distorção. O Brasil tributa muito o consumo, mas pouco a renda e o patrimônio. Nos países da OCDE, a equação é mais equilibrada – Imagem: Redes Sociais

O imposto mínimo sobre a renda altíssima tenta corrigir o que foi apontado na literatura sobre tributação e desigualdade, os lucros e dividendos não tributados desde 1995. Nos países avançados, isso não acontece. Nos poucos casos em que há autorização, a situação é corrigida por meio da tributação sobre empresas. O mundo inteiro tributa a renda das companhias e dos cidadãos, mas o Brasil sanciona o privilégio.

A proposta de isenção do IR para quem ganha até 5 mil reais foi uma exigência de Lula e é central no seu projeto político, mas será que faz sentido econômico? Para Garrido, não se pretende uma reforma geral do IR, mas busca organizar melhor as duas pontas da renda, a mais baixa e a mais alta, para reduzir a regressividade. “Diversos estudos mostram que os países da OCDE conseguem reduzir a desigualdade formada no mercado de trabalho por meio da tributação. O Brasil não consegue.” •

Publicado na edição n° 1360 de CartaCapital, em 07 de maio de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Rebelião na penthouse ‘

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Last Update: 30/04/2025